Rascunhos e um texto
mínimo
Primeiro rascunho
1.
O meu amigo andava
pacificado e nunca ia pelas gavetas dos papéis esquecidos e das memórias
perdidas.
Não queria.
E não subia ao sótão
das malas velhas, como faz quem passou os dias em cantigas de gaiola. Não
queria.
E não precisava.
Os recados tinha-os
espalhados pelas eiras da aldeia.
2.
Dizia coisas assim.
O Sol já os leu e
sabe para quem são. Vão chegando ao peito que os espera. Não preciso de mais.
Penso. Agora, não preciso.
E não quero.
Os dias e as noites
que sabem de todas as coisas estão dentro do peito e, uma de cada vez, vão
mostrando as palavras necessárias ao Sol e a quem respira.
Se são divertidas, se
são tristes a luz e a sombra sabem dar conta.
3.
À noite, algumas
vezes, falava como quem reza.
Não vou às gavetas.
Os risos e as coisas tristes durmam onde estão. Cada dia e noite sabe o que é
preciso e prepara-me. O que acontecer vai ser bom.
Somos veados a arfar
ao nascer do Sol. As agulhas de luz puxam-nos os olhos e ensinam-nos os
cheiros.
Sobretudo os que
estão escondidos.
Não quero saber das
gavetas.
Outro rascunho
Não vou às gavetas
das coisas velhas, ansioso por memórias perdidas. Não, não vou.
E não subo ao sótão
das malas velhas, como faz quem passou os dias em cantigas de gaiola.
Não quero. Não é
preciso.
Espalhei recados
pelas eiras da aldeia.
O Sol já os leu e
sabe para quem são. Vão chegando ao peito que os espera. Não preciso de mais.
Penso.
Agora, não preciso. E
não quero.
Encostados ao peito
bem alerta às palavras precisas que me foram sendo dadas estão os dias e as
noites, que sabem de todas as coisas e, uma de cada vez, as vão mostrando ao
Sol. Se são divertidas, se são tristes a luz e a sombra sabem dar conta.
Não vou às gavetas.
Os risos e as coisas tristes durmam onde estão. Cada dia e noite sabe o que é
preciso e prepara-nos para o que vai acontecer.
Somos como os veados
a arfar ao nascer do Sol, as agulhas de luz puxam-nos os olhos e ensinam-nos os
cheiros. Sobretudo os que estão escondidos.
Não quero saber das
gavetas.
Terceiro rascunho
Não subo ao sótão
curioso de velharias, não, não subo. Não quero subir.
Vá subindo o Júdice,
o poeta, afoito até ficar receoso do escuro como criança que não quer remexer
mais papéis.
E não quero saber de
recados antigos.
Espalhei-os pelas
eiras da aldeia.
O Sol já os leu e
sabe para quem são. Vão chegando ao peito que os esperou.
Não preciso de mais
por agora. Penso.
Texto final
Não abras as gavetas onde a memória
se arrumou
Alice Vieira “O que dói às aves
Não subo ao sótão
curioso de velharias, não, não subo.
E não respigo nas
malas velhas como faz quem passou os dias em cantigas de gaiola. Não quero.
Espalhei recados
pelas eiras da aldeia.
O Sol já os leu e
sabe para quem são. Vão chegando ao peito que os esperou. Não preciso de mais
por agora. Penso.
Encostado ao peito em
bom recato está o silêncio.
Não é preciso mais.