31.3.13

"A terra tem um fim. Está-nos
sob os pés."
(Robert Bringhurst, "A Beleza das Armas")

Já não sabemos das vinhas onde dormimos
mas os sonhos vagueiam
chispas de água cheiros primordiais.

Do oiro das colinas percebemos o tamanho dos dias
a ternura do crepúsculo
olhos ainda cheios de uvas maduras.

E é pouco o que peço
poder olhar o horizonte
voar em ventos lavados

descansar nos campos abertos
os outeiros beijarem as nuvens.
E saber que isto nos basta.

20.3.13

Parábola
(com a bênção de Tonino Guerra)

Lucas, 10, 38-42

A minha irmã senta-se a olhar:
estás aí mudo vento parado, irmão meio sombra.

Não abro os olhos:
é esse o teu jeito, irmã sempre viva, não desdenhes;
és o azeite da candeia, eu a oliveira.

16.3.13

Cântico Décimo Terceiro

De criança sempre gostei de canas
e roubava-as do rio
ainda verdes.
Deixava-as depois estendidas ao sol durante todo o verão
e recolhia-as, ligeiras,
como o sussurro dos mosquitos.

Quando no inverno
os ossos estalavam de frio
e os gatos tossiam sobre o damasqueiro
corria até ao sótão
e metia as mãos no meio das canas quentes
ainda com todo aquele sol em cima.

Tonino Guerra, O Mel; traduçao de Mário Rui de Oliveira; Assírio & Alvim, 2004

6.3.13

Afasta de mim o pecado da infelicidade
Manuel António Pina, O Caminho de Casa, 1989; poema Completas


Nos dias frios a solidão era mais cega.

Levantava-se e ia por gravetos e pelos cavacos de arder muito tempo e sentava-se a dormitar.
Sonhava, de pequeno, as mãos bonitas da mãe. O coração batia-lhe forte:
era grande, havia sempre sol e dormia sonhos soltos, largos.

À noite, dava mais um jeito à lareira e rezava como em criança ao colo do pai, a mãe a desenhar-lhe gestos macios na cara já quentinha.