13.5.23

 

Cântico antigo 

 

1.

Onde quero o olhar devia ser como os campos nas manhãs de geada, parados por causa do frio; mas, aos primeiros voos da pega azul e aos primeiros sopros da rola, as toalhas brancas aparecem pintadas de margaças, recreio de meninos cor de papoila, confusão bonita em rebanho de pastor benevolente, ou de corça buliçosa, mosto quente a preparar a alegria do coração.

 

Onde tenho o coração vejo sinais de mãos cuidadosas de quem borda toalhas de pôr a mesa e prepara jardins de romãs e de macieiras morenas guardados por muros bem fechados.

 

É assim a minha irmã, essência organizada sempre presente como no Livro dos Provérbios e no Cântico dos Cânticos, a compor e a alinhavar os lençóis de dormir, e a separar os lírios de entre os cardos.

 

2.

Antes de chegar a noite, a nossa casa é um recreio de meninos a comer romãs, uma biblioteca com Eugénio de Andrade ao lado do Compendium Gradualis et Missalis Romani, da Montanha Mágica também, e dos Shir Hashirîm.

Eu a olhar e a minha irmã a rir e a cantar baixinho.

Canteiro de aromas.

 

3.

Hoje, ao ir ao quintal, não gostei da romãzeira, arrumadinha.

Mas parecia a minha amiga e gostei de a olhar e de poisar nela o meu coração.

 

4.

Todos os dias nos pomos à janela a falar sobre a maneira de a casa ficar jardim bonito e como a montanha de onde olhar as palavras e os silêncios.