22.6.12

A Morte da Água


Um dos passeios que mais gosto de dar é ir a esposende ver desaguar o cávado. Existe lá um bar apropriado para isso. Um rio é a infância da água. As margens, o leito, tudo a protege. Na foz é que há a aventura do mar largo. Acabou-se qualquer possível árvore genealógica, visível no anel do dedo. Acabou-se mesmo qualquer passado. É o convívio com a distância, com o incomensurável. É o anonimato. E a todo o momento há água que se lança nessa aventura. Adeus margens verdejantes, adeus pontes, adeus peixes conhecidos. Agora é o mar salgado, a aventura sem retorno, nem mesmo na maré cheia. E é em esposende que eu gosto de assistir, durante horas, a troco de uma imperial, à morte de um rio que envelheceu a romper pedras e plantas, que lutou, que torneou obstáculos. Impossível voltar atrás. Agora é a morte. Ou a vida.

Ruy Belo; Homem de Palavra[s]

12.6.12

És rio preguiçoso
não vês o mar largo,
menino que não quer crescer, dizes.

Vou indo com os salgueiros,
demoro nos olhos das rãs
são espelho das nuvens,
não viajo depressa. Foi o nosso trato.

Mas prometeste a demora necessária,
recolher os sons das palavras certas
amadurar os lábios na cor das cerejas,
apressar o passo pelas nuvens descontentes
e chegar ao primeiro calor, insistes.

Mas crescer como a sombra,
alimentar a espera
demorar devagarinho a boca e a sede,
que a lua cheia só vale por causa das noites escuras,
a alegria a rir-se do gozo. Foi o que jurámos.

Sim, meu rio pequenino.

Verdade, mar largo e paciente.

4.6.12

O menino brincava pertinho do chão
era menino das flores e seguia atento as formigas.

As pessoas crescidas viam e esqueciam por que tinham saído de casa.

Era tudo claro e fresco. A noite ficava mais longe.
Havia também muitas horas para conversar.

O crepúsculo era um rio silencioso a guardar alguns desgostos.

1.6.12

Algumas proposições com crianças

A criança está completamente imersa na infância
a criança não sabe que há-de fazer da infância
a criança coincide com a infância
a criança deixa-se invadir pela infância como pelo sono
deixa cair a cabeça e voga na infância
a criança mergulha na infância como no mar
a infância é o elemento da criança como a água
é o elemento próprio do peixe
a criança não sabe que pertence à terra
a sabedoria da criança é não saber que morre
a criança morre na adolescência
Se foste criança diz-me a cor do teu país
Eu te digo que o meu era da cor do bibe
e tinha o tamanho de um pau de giz
Naquele tempo tudo acontecia pela primeira vez
Ainda hoje trago os cheiros no nariz
Senhor que a minha vida seja permitir a infância
embora nunca mais eu saiba como ela se diz

Ruy Belo; Homem de Palavra[s]