(Picasso)
Mãe!
Vem ouvir a minha cabeça a contar histórias ricas que
ainda não viajei! Traze tinta encarnada para escrever estas coisas! Tinta cor
de sangue, sangue verdadeiro, encarnado!
Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Eu ainda não fiz viagens e a minha cabeça não se lembra
senão de viagens!
Eu vou viajar. Tenho sede! Eu
prometo saber viajar.
Quando voltar é para subir os degraus da tua casa, um por
um. Eu vou aprender de cor os degraus da nossa casa. Depois venho sentar-me ao
teu lado. Tu a coseres e eu a contar-te as minhas viagens, aquelas que eu
viajei, tão parecidas com as que não viajei, escritas ambas com as mesmas
palavras.
Mãe! ata as tuas mãos às minhas e dá um nó-cego muito
apertado! Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa. Como a mesa. Eu também
quero ter um feitio que sirva exactamente para a nossa casa, como a mesa.
Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo tão
verdade!
José de Almada Negreiros, “A
Invenção do Dia Claro”
Em: José de Almada Negreiros -
Obras completas
4 - poesia
Editorial Estampa, 1971
(Pág. 160)
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