28.6.09

Cartas da tarde


Vens à casa todos os dias
ficamos a ver o pinhal
até o ar ficar mais doce?

Jura!

27.6.09


Vi-te a colher framboesas,
ai, Deus!

E era quase noitinha,
ai, Santa Maria!

Ai, Deus, os frutos vermelhos!
Santa Maria me valha!

15.6.09


Guarda a manhã
Tudo o mais se pode tresmalhar
(Daniel Faria)


No princípio não era o Verbo.

Era assim:
o sol começou a nascer
e trazia-te pela mão
sol pequenino
e foste a primeira palavra,
a que espero o dia todo.
Não guardei a manhã.

Quando chegar,
hei-de imolar o melhor cabrito.

8.6.09


Porto, 4 Fevereiro 1993

A ausência dos meus amigos é, de todos os
desesperos, aquele que mais me aflige.
É como a erva calcada dos campos:
uma ameaça contra a respiração.

(Daniel Faria - O Livro do Joaquim - Edição e Prefácio de Francisco Saraiva Pinto - quasi)

Nota: Daniel Faria morreu no dia 9 de Junho de 1999

2.6.09

(Fotografia de Fernanda - http://matebarco.multiply.com/)

O monge que conheci tinha:
uma horta
uma tigela
um livro de versos

e uma flor.

Um dia, tiraram-lhe a flor:
a horta secou-se
e a tigela ficou bebedoiro de pardais.

O monge está no céu:
agora
põe um verso nalgumas manhãs

flor nossa de cada dia.

25.5.09

Corremos na areia
e ficas sempre para trás!

Outro modo de te ver
alga água e
lume

22.5.09

Em lembrança

Alguns permaneceram – e permanecem – católicos. Quase todos deixaram de o ser. Alguns tiveram ainda posições de relevo, como leigos, na Igreja Católica. Quase todos ficaram nas margens d'Ela. “Na expectativa” (en úpomoné, palavra grega donde o termo vem) como um dia disse estar Simone Weil, cujo luminoso ascetismo também tanto nos marcou? Não posso falar por outros. Falo apenas por mim. Agora que tanto narrei, revejo aquele de nós que mais cedo caiu – Cristovam Pavia, que se atirou para debaixo de um comboio em 1968, aos 33 anos – e releio um poema dele. Acabo como comecei com versos. E são estes:

Voltarei à penumbra fresca da igreja
Ancestral, silenciosíssima e vazia,
Aonde está pousado o teu altar:
Doce mãe Maria...
E ajoelhar-me-ei,
E fecharei os olhos sem pensar...
Que a minha oração nada mais seja!
Basta descansar.

Apetece-me pensar que um dia será assim.

(João Bénard da Costa; Nós, os vencidos do catolicismo – Edições Tenacitas – É assim que se acaba o livro - O poema tem o título A Nossa Senhora e é do livro 35 Poemas)

9.5.09

Sol de Maio
cerejas no teu peito

Vem daí

2.5.09

Estou sentado à tua porta
dou-te os bons dias todas as tardes

Vais ficar de guarda à casa
e diremos bom dia um ao outro

Nunca digas
nesta casa não entrarei

Sentas-te à minha porta
e o quintal é cor do céu

À minha porta não há lama
ficaste lá e o teu cheiro
tu és a minha Sulamita

às vezes dói o pôr do sol.


26.4.09

Bilhete

(Foto de Marco Pedrosa)

Grande se vê o mundo do alto do monte.
Não quero o tamanho do que vejo
quero-o da minha medida.
Vou para casa.
Dormir.

Quando chegares, a porta está aberta.
Podes entrar.

12.4.09

Abro os olhos
a água traz desenhos que desenhámos,
pele lisa ainda
- julgava-os delidos

O mar guardou-os
está a pôr as pétalas no pé donde,
bem-me-quer-mal-me-quer,
em anos verdes,
as fomos soprando em desenhos de abandono

Se fosse de pôr flores no cabelo,
amantes,

íamos recolhê-las
bem me quer,
- e éramos luz,

lágrimas orvalho brilho nos olhos
- e tu no agasalho das minhas pálpebras



10.4.09

Pietà


(Pintura de João Alexandre - a partir da Pietà da Igreja de São Tiago, Belmonte)

Assim, Jesus, venho encontrar estes teus pés,
que outrora foram pés de adolescente,
quando eu tos descalçava e os lavava a medo;
como se emaranhavam em meu cabelo
como corça branca em moita de espinheiros.

Assim eu vejo teus membros nunca-amados
pela primeira vez nesta noite de amor.
Nós ambos nunca nos deitámos juntos,
e agora é só admirar e velar.

Mas como as tuas mãos estão laceradas - :
E não é, Amado, de eu tas ter mordido.
Teu coração está aberto, e pode-se entrar nele:
e devia ter sido só minha a entrada.

Agora estás cansado, e a tua boca cansada
não deseja a minha boca dorida - .
Jesus, Jesus, quando foi a nossa hora?
Que singularmente nos perdemos ambos!

(Rainer Maria Rilke: Poemas - As Elegias de Duíno - Sonetos a Orfeu. Selecção e tradução de Paulo Quintela -ASA)

9.4.09

Uma amizade é manchada assim que a necessidade leva a melhor, mesmo que por um instante, sobre o desejo de conservar, num e noutro, a faculdade de livre consentimento.
(...)
A amizade é o milagre pelo qual um ser humano aceita olhar à distância, e sem se aproximar, o próprio ser que lhe é necessário como um alimento. É a força de espírito que Eva não teve; e, contudo, ela não tinha necessidade do fruto. Se ela tivesse tido fome no momento em que olhava o fruto, e se, apesar disso, tivesse permanecido indefinidamente a olhá-lo, sem dar um passo na sua direcção, teria realizado um milagre análogo ao da perfeita amizade.

(Simone Weil - Espera de Deus ; trad. de Manuel Maria Barreiros - Assírio & Alvim)

1.4.09

Conversitas


- Mas estás linda!
- Há muito tempo que não me dizes isso...
- Quem te vê todos os dias di-lo com outros ritos.

- Foi bom teres-mo lembrado.


15.3.09



Saber que não se escreve para o outro, saber que isto que vou escrever não me fará nunca ser amado por quem amo, saber que a escrita nada compensa, nada sublima, que está precisamente aí onde tu não estás - é o começo da escrita.

(Roland Barthes - Fragmentos de um Discurso Amoroso - trad. de Isabel Pascoal ; edições 70)

8.3.09


Olha.
Hoje de manhã vi um campo muito verde.
Tinha meruges juntinhas, assim ao meu lado esquerdo,
e as margaridas já erguiam o sol.

Escuta.
Vi um verdelhão. Tinha bocados do campo e do sol das flores.
E um melro. Vi-o por causa das cores.
E o sol estava no campo. Por causa da música.

Pensei assim:
o sol cresce dentro das coisas
para que a morte venha viçosa

iremos ao mesmo sítio
pelas cores e pela música

levamos a luz nossa sombra
e fazemos assobios de melro maroto

somos meninos
ainda não vale morrer.



28.2.09

(Foto de Pedro Pedro)

O rio que corre à frente da minha casa é alegre.
A gente da minha rua diz que o rio é alegre
E eu digo com eles "o rio é alegre".

Há quem murmure fórmulas.
Outros cumprem deveres bizarros.
Vencido, o mundo jaz aos seus pés.
Mas a gente da minha rua não vê as coisas assim.
Olha, diz, o rio é alegre,
E eu, é verdade, digo com eles "o rio é alegre".

Quão lento, quão lento é o tempo!
Coisa que não pára de me causar espanto.
Entretanto, o rio corre,
O rio corre, sem perguntas
E sem as grandes ideias da rua.

Nem recordação nem ilusão provocam qualquer mudança no correr do rio.
E, ora, se uma vez ou outra por ventura não correr assim,
Que lhe seja perdoado.

(Arjen Duinker, A canção sublime de um talvez; Selecção e tradução de Arie Pos - teorema)

26.2.09

bilhete

Ri chora o que corpo e alma pedem.

Se alguém te sorrir,
senta-te criança contente e
dorme.

20.2.09

Sombras escurecem o sol
o girassol chora...
Violetas perfumadas...

Cheiras às violetas ao saíres das algas.

12.2.09

É porque a beleza não contém qualquer fim que ela constitui a única finalidade neste mundo. Porque neste mundo não há, de todo, quaisquer fins. Todas essas coisas que tomamos como fins são meios.
(…)
Só a beleza não é um meio para outra coisa. Só ela é boa em si mesma, mas sem que nela encontremos qualquer bem. Parece ser ela mesma uma promessa e não um bem. Mas nada oferece senão ela própria, não oferece nunca outra coisa.

(Simone Weil – Espera de Deus- Trad. de Manuel Maria Barreiros. Assírio e Alvim)