Colhe uma flor
se o sol vai duro
e não tenhas pressa.
Vêm aí os pássaros dos
jardins
Era quinta-feira, quente. Chegou-me a nostalgia de quando,
em férias, passeava no adro da igreja da minha aldeia cheia de tílias. Fui para
lá.
Havia certa frescura e passava um rumor sereno. Vinha da
igreja e parecia brisa da montanha.
Na igreja estavam pessoas a rezar. Ouvi: - mistérios
luminosos.
Deixei-me ficar e vi-me, rapaz novo, a ler o “Cântico dos
Cânticos”, o dos mistérios luminosos gozosos gloriosos, luminosos como o nardo
da rainha de Sabá sereno como o voo das abelhas.
Lindo como as abelhas a rezar entre as tílias. Mistério de
luz.
Colmeal, 28, Junho, 2023
Cântico antigo
1.
Onde quero o
olhar devia ser como os campos nas manhãs de geada, parados por causa do frio;
mas, aos primeiros voos da pega azul e aos primeiros sopros da rola, as toalhas
brancas aparecem pintadas de margaças, recreio de meninos cor de papoila,
confusão bonita em rebanho de pastor benevolente, ou de corça buliçosa, mosto quente
a preparar a alegria do coração.
Onde tenho o
coração vejo sinais de mãos cuidadosas de quem borda toalhas de pôr a mesa e
prepara jardins de romãs e de macieiras morenas guardados por muros bem
fechados.
É assim a
minha irmã, essência organizada sempre presente como no Livro dos Provérbios e
no Cântico dos Cânticos, a compor e a alinhavar os lençóis de dormir, e a
separar os lírios de entre os cardos.
2.
Antes de
chegar a noite, a nossa casa é um recreio de meninos a comer romãs, uma
biblioteca com Eugénio de Andrade ao lado do Compendium Gradualis et Missalis
Romani, da Montanha Mágica também, e dos Shir Hashirîm.
Eu a olhar e
a minha irmã a rir e a cantar baixinho.
Canteiro de
aromas.
3.
Hoje, ao ir
ao quintal, não gostei da romãzeira, arrumadinha.
Mas parecia
a minha amiga e gostei de a olhar e de poisar nela o meu coração.
4.
Todos os
dias nos pomos à janela a falar sobre a maneira de a casa ficar jardim bonito e
como a montanha de onde olhar as palavras e os silêncios.
1.
Há palavras irrequietas, gaiatas
bonitas, não sabem o sítio certo, calmo e branco, onde possam estar e serem
olhadas. Parece.
Mas sabem donde vieram: quem as vir
logo verá o que são. E que trazem nas entranhas.
O vento, que sopra onde quer, colhe-as
e espalha-as;
às vezes, é doido: se zangado, mistura-as
como revolteia as folhas que já se sentem no sítio certo, e as palavras ficam
ramos secos.
Parece que dormem. Ao menos, o vento
as sacudisse, ou ficassem noutro chão ou nas águas da levada.
Alguém as iria ler. Fora da brancura
em que costumam aparecer, mas disponíveis.
As palavras mexem-se, não são coisa
obesa, amarrada ao chão. Estariam mortas, entre fedores.
As palavras mortas são o mais ruim dos
males, pensava Heraclito.
Andam é irrequietas. Ou talvez não as
vejamos. Ou outros barulhos as tapem. Ou as adormeçam.
Ainda não é o tempo do mal o pior.
O tempo tem a idade das palavras. E as
palavras não sabemos onde nasceram, mas percebemos que foi o silêncio que as
segurou nas mãos como quem leva crianças pelos caminhos de crescer.
Às vezes, mostram-se doidivanas. Não,
não é isso: parece que andam a jogar ao esconde-esconde.
Precisamos das palavras assim.
6.
“Sê paciente; espera…”, disse-nos
Eugénio de Andrade.
Carreiro da Lama, 16 de Fevereiro de 2022
Experimenta
trepar até perto das nuvens brancas e quietas. Ao primeiro suor, senta-te no
chão da encosta, no musgo. Bem sentado. Podes fechar os olhos um bocado;
depois, vês melhor o céu e as nuvens companheiras de quem sabe saber-se olhado.
Tu, o resto
de ti, abre os braços a respirar fôlegos largos, tranquilos, como dissesses:
como é bom estarmos aqui, as nuvens sabem esperar e retardam o tempo, a noite
passa ao lado; é bom saber-se esperado.
As nuvens
sabem, mas não faças aí a tenda; pode amarrar-te ao vale dos teus olhos
enquanto o olhar deseja aquilo que te prendeu - a poesia que anda entre as
ervas e o céu que desenha no chão a vontade das nuvens, e também dentro de nós.
Bocados de
música as nuvens brancas.
Retarda o
tempo. É bom sabermos que somos olhados.
E esperados.
A poesia que anda entre o chão e o céu. Das coisas pequenas aos ramos
abundantes. Do respirar calmo ao êxtase
E saibas
sentir: é bom estar aqui.
Raúl Brandão não podia ver uma árvore sem espanto e das pedras extraía-lhes a ternura.
As árvores são mais que os
frutos que nos mostram; são as memórias de quando as víamos, sejam sombras de
descanso e de espera, ou ventanias de inquietação.
E sabe bem recordar a pedra e o bosque onde esperávamos, e não é mau percebermos as causas e os remédios das horas dolorosas.
Tenho nos olhos a figueira da
horta dos avós; as tílias à volta da igreja da aldeia do meu nascimento; a
amoreira, a nogueira e uma oliveira de sítios doutro modo de nascer.
Ainda me está no peito a
japoneira e a pedra musgosa ao lado: foi onde li, da Odisseia, as treze
pereiras, dez macieiras, quarenta figueiras do pomar de Laertes. O velho pai
tinha ensinado ao filho os nomes que lhes pertenciam: “tu disseste-me os nomes
e explicaste como era cada uma”, disse o filho, e o pai “atirou os braços em
torno do filho”,
e “o espírito voltou ao coração” *
A japoneira, e a pedra sua companhia, eram farol de um jardim meditação de monges.
A tradição rabínica lê o primeiro sentido das árvores igual aos sentidos dos mensageiros: as árvores não são só frutos e sombra. Isso é coisa de olhos desatentos.
São sobretudo aquilo que nos anunciam.
Por isso, é bom olhá-las e os sítios em que nos conheceram. E onde as fixámos.
Elas sabem-nos nos lugares certos e são mensageiras das nossas memórias.
Há árvores que conhecem a casa onde moramos. E são nossas visitas.
Carreiro da Lama, 21/Jan/2022
1.
Em dias de frio lindo, vamos à rua, agasalhados em boas conversas e chega-nos a lembrança de quem anda sem casa nem roupa. E o dia sabe mal e fica feio.
Dizer assim é melado; e é reacionário. E é.
2.
O
eremita saiu da cabana a ver se os pés aqueciam. A manta agasalhava, mas os pés
tinham frio. Caminhou a olhar o chão, a pensar nas aves do céu e nas ervas dos
caminhos.
Os
pés mornos, voltou à manta, pegou o “Livro de horas” e ficou consolado, a rezar
salmos e antífonas.
E o dia não lhe foi frio. Nem feio.
Esqueceu-se
do que foi dito: as raposas têm tocas onde se recolhem e as aves do céu têm a
quentura das penas e ninhos que as recebem e acalmam.
E não
se lembrou de quem não tem onde repousar a cabeça.
O velhote precisou de muitas noites de mau dormir para entender um sonho que vinha e fugia como relâmpago de trovoada afastada.
Ao chegar da escola, sentava-se numa mesa de toalha branca. A mãe estendia bocados de pão.O pai e os irmãos também estavam lá.
Quando percebeu o sonho, ficou contente.
Ficava muitas vezes à janela a pensar
na mesa de quando era menino.
Foi-nos dito que “no princípio era o Verbo” e começámos a pensar nas diferenças das línguas: se a nossa “Palavra” corresponde ao “Logos” dos gregos na sua densidade de significados – palavra, razão, discurso; se Logos traduz bem “dabar” dos hebeus – o que opera e faz, e também as coisas que cada um sabe encontrar no que ouve ou vê.
E é melhor ficarmos calados.
As palavras são flores gaiatas, e vestidas de silêncios. Nunca se mostram iguais. Guardam escondem muitos sentidos. É preciso encontrá-los.
2.
Angelus Silesius disse-nos que “é
através do silêncio que ouvimos” (1).
No Horeb, o que Elias procurava não lhe foi trazido nem pela ventania, nem pelo fogo, nem pelo barulho da terra a tremer. Foi um “murmúrio de brisa leve”, “silêncio subtil”, que lhe pôs defronte aquilo que procurava (2).
3.
Seja-nos dito: no princípio era o silêncio. O espírito há-de voltar ao coração como o de Laertes quando os olhos viram quem esperava (3).
(1) “A rosa é sem porquê”, trad. e prefácio de José Augusto Mourão - Vega Passagens, pág. 51.
(2) 1 Reis, 19, 12.
(3) Odisseia, XXIV, 345.
No princípio é a relação.
Veja-se a linguagem dos "primitivos",
isto é, dos povos que permaneceram pobres em objetos e cuja vida se edifica no
interior de uma restrita esfera de atos que têm uma forte presença. Os núcleos
desta linguagem, as palavras-frase [...] designam em geral a totalidade de uma
relação. Nós dizemos "muito longe", mas o zulu profere uma
palavra-frase que significa: " O lugar onde alguém grita: mãe,
estou perdido! E o habitante da Terra do Fogo sobrepuja a nossa
sabedoria analítica com uma palavra-frase de sete sílabas, cujo sentido exato
é: "Olham um para o outro, cada qual espera que o outro se ofereça para
fazer o que ambos desejam, mas nenhum gosta de fazer."
Martin Bubar; Eu e Tu; trad. de Artur Morão e
Sofia Favila
Paulinas Editora; Outubro 2014 – Pág. 22
Rascunhos e um texto
mínimo
Primeiro rascunho
1.
O meu amigo andava
pacificado e nunca ia pelas gavetas dos papéis esquecidos e das memórias
perdidas.
Não queria.
E não subia ao sótão
das malas velhas, como faz quem passou os dias em cantigas de gaiola. Não
queria.
E não precisava.
Os recados tinha-os espalhados pelas eiras da aldeia.
2.
Dizia coisas assim.
O Sol já os leu e
sabe para quem são. Vão chegando ao peito que os espera. Não preciso de mais.
Penso. Agora, não preciso.
E não quero.
Os dias e as noites
que sabem de todas as coisas estão dentro do peito e, uma de cada vez, vão
mostrando as palavras necessárias ao Sol e a quem respira.
Se são divertidas, se são tristes a luz e a sombra sabem dar conta.
3.
À noite, algumas vezes, falava como quem reza.
Não vou às gavetas. Os risos e as coisas tristes durmam onde estão. Cada dia e noite sabe o que é preciso e prepara-me. O que acontecer vai ser bom.
Somos veados a arfar
ao nascer do Sol. As agulhas de luz puxam-nos os olhos e ensinam-nos os
cheiros.
Sobretudo os que estão escondidos.
Não quero saber das gavetas.
Outro rascunho
Não vou às gavetas
das coisas velhas, ansioso por memórias perdidas. Não, não vou.
E não subo ao sótão
das malas velhas, como faz quem passou os dias em cantigas de gaiola.
Não quero. Não é preciso.
Espalhei recados
pelas eiras da aldeia.
O Sol já os leu e
sabe para quem são. Vão chegando ao peito que os espera. Não preciso de mais.
Penso.
Agora, não preciso. E não quero.
Encostados ao peito bem alerta às palavras precisas que me foram sendo dadas estão os dias e as noites, que sabem de todas as coisas e, uma de cada vez, as vão mostrando ao Sol. Se são divertidas, se são tristes a luz e a sombra sabem dar conta.
Não vou às gavetas.
Os risos e as coisas tristes durmam onde estão. Cada dia e noite sabe o que é
preciso e prepara-nos para o que vai acontecer.
Somos como os veados a arfar ao nascer do Sol, as agulhas de luz puxam-nos os olhos e ensinam-nos os cheiros. Sobretudo os que estão escondidos.
Não quero saber das gavetas.
Terceiro rascunho
Não subo ao sótão
curioso de velharias, não, não subo. Não quero subir.
Vá subindo o Júdice, o poeta, afoito até ficar receoso do escuro como criança que não quer remexer mais papéis.
E não quero saber de
recados antigos.
Espalhei-os pelas
eiras da aldeia.
O Sol já os leu e
sabe para quem são. Vão chegando ao peito que os esperou.
Não preciso de mais por agora. Penso.
Texto final
Não abras as gavetas onde a memória
se arrumou
Alice Vieira “O que dói às aves
Não subo ao sótão
curioso de velharias, não, não subo.
E não respigo nas malas velhas como faz quem passou os dias em cantigas de gaiola. Não quero.
Espalhei recados
pelas eiras da aldeia.
O Sol já os leu e sabe para quem são. Vão chegando ao peito que os esperou. Não preciso de mais por agora. Penso.
Encostado ao peito em
bom recato está o silêncio.
Não é preciso mais.
de novo no Jardim, desta vez foram romãs, colhidas antes de tempo mas já nos ramos mais altos disponíveis para o gato. O gato não é dali, mas é visita frequente. Busca a sombra ou busca festas de barriga para o ar marca o seu espaço de mimo brinca com as lagartixas até se cansar de brincar aquele jardim é mais dele, pois o deixam passear, afia as unhas nas árvores onde aguardam as romãs E como quem diz vou voltar salta para um telhado e dali para outro espaço onde também é amado... (Novembro, 2019)