16.7.16

Abraão e Isaac
(Génesis, 21 e 22)

1
Abraão toma seu filho Isaac e vai encontrar-se consigo mesmo, como Deus falou na sua maneira pouco clara de se manifestar.
Levam nas entranhas, o pai, a negrura de não entender as palavras todas;
o filho, o silêncio confiante no pai que o chamou.

Chegar a Moriá dura três dias, tempo bastante para o silêncio que desvela o invisível.


2
Vai no peito de cada um
- Meu pai!
- Eis-me aqui, filho.
- Eis o fogo e a lenha. Onde o cordeiro do holocausto?
Seguem os dois unidos.

Três dias é medida da eternidade. Deus proverá.


3
O pai sabe o que lhe foi dito; o filho segue junto do pai;
seguem no mesmo coração.


4
A tamareira em Bersabé, pomar de frutos abundantes,
a terra de Bersabé explica os silêncios e retém o tempo.
O pai a quem foi dito: toma teu filho, aquele que tu amas
quere-o interminável.
O filho que ouvira do pai aos servos: depois voltaremos para junto de vós
sabe que aquilo que leva não é a lenha do seu sacrifício.

Depois voltaremos para junto de vós
embalava-lhes o coração, silêncio música suave.
Seguem os dois unidos.


5
Na terra de há três dias o pai tinha invocado o Deus de eternidade, e Sarai,
Sara princesa que todos queriam olhar guardava no coração os sorrisos, os seus e os de Isaac seu filho, como dissera:
Deus sorriu-me, as minhas entranhas foram riso de Deus.
E Abraão a todos clamara:
este filho rirá e já nos dá alegria. Isaac é o seu nome.

O filho segue unido ao pai. O pai sabe o que lhe foi dito.
De palavras e silêncio são os seus passos. E o respirar.


Colmeal da Torre, 15 de Julho, 2016

1.1.16


Eu não amo aquele que não dorme, diz Deus.
O sono é amigo do homem.
O sono é amigo de Deus.
O sono é talvez a mais bela das minhas criações.
Eu próprio descansei ao sétimo dia.
O que tem o coração puro, dorme. O que dorme, tem o coração puro.
É o grande segredo de ser-se infatigável como uma criança.
De ter como
uma criança força nas pernas.
Pernas novas, almas novas
E de recomeçar todas as manhãs, sempre novo,
Como a jovem, como a nova
Esperança.

Charles Péguy; Os Portais do Mistério da Segunda Virtude;
Tradução de Armando Silva Carvalho - Paulinas Editora

31.12.15


Não vamos dizer nada. O resto do dia será nítido,
palavra tranquila, irmã gémea do silêncio,
do tamanho da esperança. A que não sabe mentir.
Campo bem lavrado.

27.12.15

Bilhete-postal atoleimado e fora de estação

Andamos bem. Os skates esparramam-se nos half pipe.
Levamos as cores dos Leggings tribal e os desenhos.
Andamos que ninguém nos vê. Só nos olham.

Também não vemos ninguém. Não é preciso.
Devias ver as minhas sobrancelhas. Tapam-me os olhos.
Quando as conversas não interessam, abano-as como castanholas de som seco.

Aqui é tudo intrépido. Rapidinho. Não nos comprometemos. Nem com o vento.
Conhecemos os gestos necessários. Os que aproximam e os outros quando apetece e por pouco tempo.

Andamos a voar, sempre a voar
t-shirt cinza, Lightning Bolt, ténis que prolongam a nossa delgadez,
nuvens finas nos levam e estamos a gostar.






25.12.15

24.12.15

Somos como as palavras: carne e luz.
E silêncio.
Amanhecemos na mesma casa.

Baltar, 24/Dez/2015

15.12.15

ONDE VAIS ?

A primeira palavra que ouvi
na minha vida
foi "onde vais?"
Num aposento sentados
em sacos de milho
eu e a minha mãe.

Tinha apenas um ano
e não sabia ainda
o que eram as palavras
e onde me poderiam levar.

Tonino Guerra; Histórias para uma noite de calmaria
Tradução de Mário Rui de Oliveira - Assírio & Alvim


15.11.15

Com bênção de Tonino Guerra *

III
À colina ao lado da aldeia, para nascente, chamam-lhe o Sítio da Coitadinha.
No tempo da guerra, alguns rapazes e raparigas, acabado o trabalho nas hortas nos dias grandes, iam para lá ao minério que medrava como os rosmanos e as giestas e era só chegar, colher e lavar. As mães ficavam em casa a preparar a ceia e os pais conversavam nas tabernas.
Para onde iria ser levado o minério era coisa só sabida por uns cavalheiros que apareciam de vez em quando; levavam os sacos da colheita e deixavam dinheiro que se via, que para gente de pouco esperar o pouco costuma ser cabonde.
Escolhiam, aos pares, rapaz e rapariga, lugares afastados uns dos outros. Quando cada um ia pela barroca onde corria água, o minério era limpo da terra e lavavam-se também os suores. Às vezes, os corpos misturavam-se e a tarde era céu aberto até ao toque das Avé-Marias.
Há um casal com cerca de oitenta que vai à Coitadinha nalgumas tardes soalheiras e os filhos não percebem por que razão os pais entram em casa com sorrisos marotos.
* Histórias para uma Noite de Calmaria; Assírio & Alvim

Colmeal da Torre, 15/Nov/2015


12.11.15

Com bênção de Tonino Guerra *

II
O segundo claustro do mosteiro estava incompleto e os anciãos já não iam para lá conversar entre a ceia e o grande silêncio.
Quem ia de visita admirava a sineta do claustro perfeito, voz de Deus a acordar os monges para rezarem as laudes e perdia o olhar por entre as portas do Capítulo e o claustro inacabado, ganhando afeição àquele espaço sem portas onde podia entrar o mundo todo. Por isso, o claustro era perfeito.
Como quem busca hospedagem nos primeiros frios do Outono, uma magnólia branca entrou e deu flor no claustro abandonado e, agora, ouvem-se poemas assim:
"Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página
E aproveito o facto de teres chegado agora
Para te explicar como vejo o crescer de uma magnólia." (1)
"...Se puderes ficar em silêncio
Não te igualarás à magnólia, mas repousarás
Como o musgo que lhe cresce no tronco." (1)
"Se acender a luz
Não morrerei sozinho" (2)
O poeta Daniel Faria não chegou a ser ancião. Foi repousar, como quem reza:
"E agora sei que oiço as coisas devagar". (3)
A magnólia anda triste, disse-me um monge numa tarde deste Outono.

1) Dos Líquidos; 2) Explicação das Árvores e de Outros Animais; 3) O Livro do Joaquim
* O Livro das Igrejas abandonadas

Colmeal da Torre, 12/Nov/2015


8.11.15


Se não tinha para onde ir, deixava-se quieto. Perguntavam-lhe o que tinha.
- Os caminhos são como o sol.
Ficava assim, rico de coisas pequenas, quietude na casa perfeita.
- As nuvens é que são migrantes. Muito jovens. sigo-as com os olhos.

Colmeal da Torre, 8 de Novembro de 2015


4.11.15


Com bênção de Tonino Guerra*
I
Ao Convento da Serra da Esperança chegavam alguns dos frades de São Francisco para expiarem pecados e atropelos, informava o guia do turismo.
Casa pequena, acima da meia encosta, tem vista para o vale do Zêzere. O visitante que não levava máquina fotográfica falou:
- Se do rio formos erguendo os olhos, chega-se à Estrela passeada por aquelas nuvens e por golpes de sol; e, repare, senhor guia, recolhendo-se a atenção ao vale, a gente fica a pensar em como seria bom para os frades fazerem pecados.
O guia não respondeu, o roteiro era omisso.

*O Livro das Igrejas Abandonadas; Assírio & Alvim


Colmeal da Torre, 2/Nov/15

1.11.15


Há silêncios tecidos na barriga da nossa mãe.
Sabe bem ouvir algumas vozes, prados em flor.

As palavras são vinho, mel, cheiro de margaça.
 O silêncio vestiu-as de claridade.

24.3.15

Nascemos para o sono

Nascemos para o sono,
nascemos para o sonho.
Não foi para viver que viemos sobre a terra.
Breve apenas seremos erva que reverdece:
verdes os corações e as pétalas estendidas.
Porque o corpo é uma flor muito fresca e mortal.

O Bebedor Nocturno poemas mudados para português por Herberto Helder - Assírio & Alvim
(Poesia mexicana do ciclo Nauatle)

27.2.15


Para haver pradaria, basta trevo, uma abelha,
Um trevo, abelha,
E fantasia,
Chegava a fantasia,
Se poucas as abelhas.

Emily Dickinson; Cem Poemas; tradução, Posfácio e Organização de Ana Luísa Amaral;
Relógio D'Água, 2010

25.2.15

No princípio é a relação.
Veja-se a linguagem dos "primitivos", isto é, dos povos que permaneceram pobres em objetos e cuja vida se edifica no interior de uma restrita esfera de atos que têm uma forte presença. Os núcleos desta linguagem, as palavras-frase [...] designam em geral a totalidade de uma relação. Nós dizemos "muito longe", mas o zulu profere uma palavra-frase que significa: " O lugar onde alguém grita: mãe, estou perdido! E o habitante da Terra do Fogo sobrepuja a nossa sabedoria analítica com uma palavra-frase de sete sílabas, cujo sentido exato é: "Olham um para o outro, cada qual espera que o outro se ofereça para fazer o que ambos desejam, mas nenhum gosta de fazer."

Martin Bubar; Eu e Tu; trad. de Artur Morão e Sofia Favila - Paulinas Editora; Outubro 2014

20.2.15


Só não nos devemos calar quando temos algo para dizer mais valioso do que o silêncio.

(Abade Dinouart; A Arte de Calar - Citado por F. Pinto do Amaral em Relâmpago, Revista de Poesia, nº 34 Abril de 2014)

15.2.15

26.12.14

23.12.14

    Ele pensa nos seus três filhos que neste momento brincam junto à lareira.
Brincam, trabalham, não se sabe.
Trabalham ajudando a mãe, não se sabe.
As crianças não são como os homens.
Para as crianças, brincar, trabalhar, descansar, ficar quieto, correr, é tudo a mesma coisa.
Uma só coisa.
É tudo igual, eles não fazem diferença.
São felizes.
Divertem-se o tempo todo. Quando trabalham ou quando brincam.
Nem reparam nisso.
São felizes.
Têm as suas regras. As mesmas regras de Jesus.
Do menino Jesus.
E também a esperança é a que se diverte o tempo todo.

    Ele pensa nos seus três filhos que brincam a esta hora ao canto da lareira.
Oxalá estejam felizes.

Charles Péguy, Os Portais do Mistério da Segunda Virtude; tradução de Armando Silva Carvalho; Paulinas Editora, 2014

5.12.14

(...)
Vê que não me afastei e continua: "Quando temos uma saudade, não é falta, é presença, é uma visita, chegam pessoas, países, de longe e fazem-te alguma companhia." Com que então, dom Rafaniè, todas as vezes que sentir uma falta, terei de lhe chamar presença? "Claro, que é para dares as boas vindas a cada falta, para a receberes bem." Então depois de teres voado, eu não devo sentir a vossa falta? "Não, diz, quando calhar pensares em mim, eu estarei presente."

Erri de Luca; Montedidio - Trad. de Simonetta Neto; Bertrand Editora, Lisboa 2012

1.11.14

" O coração do homem dispõe o seu caminho."
(Livro dos Provérbios, 16, 9)

Um caminhará para as montanhas,
no alforge a luz dos que morreram.
Há-de ver o irmão,
mãos das auroras buliçosas.

Seguirão seus caminhos,
que a vida é sol nascente,
fazedor de muitos dias.
É também mar de pontos luminosos.

22.10.14

Oferenda

"Inclina o ouvido do teu coração"

a cada palavra mil silêncios
música pequenina flauta,
bicho da seda flores de macieira

isto sei oferecer
água a enlear os seixos
saudosa das nascentes das palavras todas.

"Inclina o ouvido do teu coração".

15.7.14

O essencial fermenta no coração das palavras,
afável dormitório ventre paciente.

Espaçados são os seus murmúrios,
fontes esquivas mas lindos como o trigo.

As aves dormem nas searas,
não tarde vento benigno.

2.7.14


O Poeta

O poeta é igual ao jardim das estátuas
Ao perfume do Verão que se perde no vento
Veio sem que os outros nunca o vissem
E as suas palavras devoraram o tempo.

Sophia de Mello Breyner Andresen, No Tempo Dividido

27.4.14

Apesar de muitas coisas

Hoje sentei-me a olhar o quintal.
Passa um vento benigno a pentear as margaças.
Vem dos montes, traz luzes antigas, banhos de sol. Apesar de tudo.

Colmeal da Torre, 25 de Abril de 2014

20.4.14

As Flores

Era preciso agradecer às flores
Terem guardado em si,
Límpida e pura,
Aquela promessa antiga
De uma manhã futura.

Sophia de Mello Breyner Andresen; No Tempo Dividido

18.4.14

Pietà (Escultor José Rodrigues) -  Catedral Bragança-Miranda

Agora completou-se o meu sofrimento e inominavelmente
dele estou repleta. Fico imóvel como o interior
da pedra fica imóvel.
Dura como estou, uma coisa apenas sei na minha dor:
Tu cresceste
e cresceste,
para te elevares
como dor desmedida
muito para lá da medida do meu coração.
Agora jazes atravessado no meu colo,
agora já não Te posso
dar à luz.


Rainer Maria Rilke; A Vida de Maria - Trad. e Pref. de Maria Teresa Dias Furtado; Portugália Editora, 2008.



10.4.14

Se tudo ao  menos uma vez se calasse
Rilke; O Livro de Horas - Livro Primeiro, O Livro da Vida Monástica; trad. de Paulo Quintela

É bom haver coisas a que já não queremos dar o nome. Ou que não têm nome. Sabemo-las e não precisam ser chamadas, como as flores e as cores se conhecem.

O acidental não tem modos, anda por aqui e por ali; se não lhe damos um nome, não sabemos chamá-lo ou repeli-lo. E ele é tanto luminoso como obscuro.

Não seja preciso dizer meu amor; amo-te, também não.
Desenhe-se por dentro das pálpebras a luz e a sombra, como, pequeninos, escrevíamos os dedos e as mãos da mãe e sorríamos.

O essencial é como as fontes, conhecemo-las e vemo-nos nelas. São a luz e a frescura.
Não é preciso nomeá-lo.

27.3.14

A horta de meu pai

Ele ampara a altura
de incontáveis plantas e rebentos
estende a cal, espera a floração
em sítios desabrigados
pergunta-se: este caminho tem coração?

quando reparo na horta desde o terreiro da casa
não me parece que esteja ali,
mas em qualquer passagem inacessível
na fronteira avançada
que me arrasta para uma verdade

as groselheiras pendem dos muros
a tudo o sol concede a exacta porção

José Tolentino Mendonça; Estação Central - Assírio & Alvim, Setembro de 2012

21.3.14

Não são frios os silêncios

Vamos por desperdícios amorosos
tarde doce, olhos palavra

mãe sentada no balcão a ver os pássaros na cerejeira,
língua de fumo das casas antigas.

Delicados são alguns patamares da vida
e íngremes as escadas do silêncio.

Onde passa o vento de todo o lado,
o alto das árvores é de palavras lavadas.

O silêncio chama os frutos pelo nome.

28.1.14

A Avó


Tinha ao colo o gato velho
cansadamente passando
a sua branca mão pelo
pêlo dele preto e brando

Sentada ao pé da janela
olhando a rua ou sonhando-a
todo o passado passando
a passos lentos por ela

Dormiam ambos enquanto
a tarde se ia acabando
o gato dormindo por fora
a avó dormindo por dentro

Manuel António Pina; Os Livros; Assírio & Alvim, 2003

27.1.14

A Borboleta

(Do filme O Rapaz do Pijama às Riscas)

Contente mesmo contente
estive na vida muitas vezes
mas nunca como na Alemanha
quando me libertaram
e me pus a olhar uma borboleta
sem vontade de a comer.
Tonino Guerra; Histórias de uma Noite de Calmaria; tradução de Mário Rui de Oliveira; Assírio & Alvim; 2002

19.1.14

Tinha duas hortas para se ocupar.
Nas manhãs orvalhadas, prendia-se às margaridas que lhe lembravam a adolescência. E, aos domingos, era sempre um gosto se podia lembrar as corridas para a escola onde se perdia a olhar para a rapariga que tinha olhos de sol da manhã. A alegria dos domingos tinha uma ponta de amargura.

Era nos dias santos que lhe sobrava tempo para ter lembranças.

Os dias de trabalhar eram-lhe tempo cego; passava-os no outro quintal, trabalhava muito para não dar conta da demora dos domingos; nunca soube se havia neles pingas de orvalho.

Ao domingo saía cedo da cama. Quando as margaridas piscavam luzes de muitas cores, ficava pensativo, mas dizia sempre bom dia a quem passava por se lembrar de quando ia para a escola. As pessoas pensavam que era feliz.

Às vezes apanhava uma flor, tirava-lhe as pétalas, bem-me-quer-mal-me-quer, e levava para casa o sol da manhã. Quase contentes.


Colmeal da Torre, 19 de Janeiro de 2014

21.12.13

O tesouro é então a magnólia segredada entre nós dois
É o canto que circula entre os lábios, a seiva
Entre o nosso cérebro e o seu próprio coração.
O coração do poema é a magnólia ao vento. Abro
Os braços, as veias, e digo
Tu que te abrigas fora de casa. E a minha promessa
É esta - que de pedra existe
Junto da magnólia permanece
Mesmo quando a sombra
Seca. E o pássaro parte. E a flor
Depois das chuvas não vem.

Daniel Faria; Poesia; Quasi Edições, 2003 (pág. 332)

16.12.13

O monge espalhava nos claustros sementes à espera dos pardais.
Disse-me que, até a rezar muito antes de nascer o sol, metia no peito o gozo das magnólias à vista dos pássaros que aparecem às primeiras luzes. E que até o chão parecia ter bocados de música. E era por isso que gostava do silêncio. Encontrava lá a fieira das palavras.

Também, se dava conta do vento fino entre as outras plantas, dizia:
fala baixo; as palavras querem-se pequenas, música de passarinhos.

13.12.13

André Derain

Copiado de: http://amata.anaroque.com/

30.11.13

A casa dos diospiros

1.
Onde quero o olhar devia ser como os campos nas manhãs de geada, parados por causa do frio; mas,ao primeiro voo da pega azul e aos primeiros sopros do vento, as toalhas brancas aparecem pintadas de margaças, movimentos de tudo, recreio de meninos cor de papoila, confusão bonita como rebanhos de pastor benevolente. Mosto buliçoso a preparar invernos marotos.

Onde tenho o coração vejo sinais de mãos cuidadosas, de quem borda toalhas de pôr a mesa, ou prepara os jardins de gente especiosa. Mãos arquitectas de espaços rei e rainha e de princesa à espera do princês. Tudo muito certo. Arrumadinho.
A minha irmã, essência organizada sempre presente como no Livro dos Provérbios, dispõe as casas como a pentear os meninos do coro, ou a alinhavar lençóis de dormir.

2.
A nossa casa devia ser um recreio de meninos a comer diospiros, uma biblioteca com Eugénio de Andrade ao lado do Compendium Gradualis et Missalis Romani, da Montanha Mágica também, eu a olhar, e a minha irmã a rir e a cantar baixinho.

3.
Hoje, ao ir ao quintal, não gostei da romãzeira, arrumadinha.
Mas parecia a minha irmã e comecei a gostar de a olhar e de poisar nela o meu coração.

Todos os dias nos pomos à janela a falar sobre a maneira de a casa ficar bonita
jardim de meninos a comer diospiros
e também como uma montanha de onde olhar as coisas, as palavras e os silêncios.

Colmeal da Torre, 28 de Novembro, 2013

15.11.13

Conversitas

Há dias de boa luz
passeios vagarosos perto da água;
no entanto,
é turva a memória do que nos encheu
e para outros caminhos a bússola é desconcertada.

Mas é essa luz que tens querido
e é a importância que dás às coisas
as flores estarem no seu sítio
a água saber dos caminhos.

Somos feitos de penumbra
e o que se vê, bola breve de sabão.
O dia é semeador desajeitado.

Colmeal da Torre, 15 de Novembro, 2013

10.11.13

Dádiva

Um dia tão feliz.
O nevoeiro levantou cedo, eu trabalhava no jardim.
Os beija-flores pairavam sobre a madressilva.
Não havia na terra coisa que eu quisesse ter.
Não conhecia ninguém digno da minha inveja.
O que houvera de mal, já tinha esquecido.
Não tinha vergonha de me lembrar que tinha sido quem fôra.
No meu corpo nada doía.
Endireitando as costas, via as velas e o mar azul.

Czesław Miłosz, em Alguns gostam de poesia, Antologia; Selecção, intodução e tradução do polaco de Elzbieta Milewska e Sérgio das Neves, cavalo de ferro

5.11.13

Quando leres um poema que te leve a fechar os olhos,
joga ao faz de conta:
estás a ver a casa
ela vai indo atrás das palavras
cada vez mais pequena
quase chão
só vês as janelas.

O poema é a nossa casa.

Faz ainda de conta:
chega o dia de ir embora
o silêncio vai abrindo as janelas
uma a uma vais vendo as palavras
abelhas cheias de mel.

É a nossa casa. Fica mais um bocadinho.


Colmeal da Torre, 4/Novembro/2013
(a pensar nos filhos e netos)

23.10.13

As recordações olham para mim

Uma manhã de junho, quando ainda é cedo para acordar
mas demasiado tarde para voltar a pegar no sono.

Embrenho-me pelo arvoredo repleto de recordações
e elas seguem-me com os seus olhares.

Autênticos camaleões, elas não se mostram,
diluem-se literalmente no cenário.

E embora o gorgeio dos pássaros seja ensurdecedor,
estão tão perto de mim que ouço como respiram.

Tomas Tranströmer, 50 Poemas; tradução de Alexandre Pastor; Relógio D'Água,

22.10.13

São nómadas e param na meia encosta.
Levam o pavor das terras inundadas e as bagas dos montes não lhes enfeitam os cabelos.

O mar longe põe-lhes a alma mais negra, e os nevoeiros tapam o alto da montanha;
nenhuma pomba aparece com o raminho de oliveira.

Mas olham-se uns aos outros, ouvem como respiram
e entendem que estar triste é tão bom como a alegria das águas abundantes.

(Nota necessária:  hoje, ao abrir o livro que tinha à mão, hábito velho, reli o poema “As recordações olham para mim“ de Tomas Tranströmer. É bem possível que este meu texto seja seu devedor, dado que sei que o livro andou comigo nos finais de Setembro. Colmeal da Torre, 23/Out/13)

7.10.13

Uma palavra e algumas variações


Morrer em céu aberto

Os cisnes andavam para nascente
olhos presos nas margens
a água descia
porca

pedi aos céus nuvens lavadas
luzes de adormecer
divã de algas até ao mar

e desenhei o tempo
como as crianças sonham as flores.

Termas, 5/Outubro/2013

5.10.13

Vi
No fundo do mar
Algas salgadas
Grandes e tristes

Dói
Saber
Que há algas
Grandes e tristes
Dentro do mar

Amélia Pais
http://barcosflores.blogspot.pt/2005_01_01_archive.html

24.9.13

O sol sobre a pedra a marca verde
a resolução do ar   a erva
só com a cabeça deserta

porquê? porquê e não porquê
com o sol nos cabelos com o sol
entre as árvores e sem a alegria
dos animais e a água.

Entrando na espessura sob as manchas
do silêncio sem amor mas no silêncio
das folhas eu vivo pelas pedras.

António Ramos Rosa, O Incêndio dos Aspectos; Na Regra do Jogo, 1980

22.9.13

VEM CHEGANDO

(Sergei Ilnitsky / EPA)

Vem chegando o outono
volta a fixar-se
nas cores do país solar.

Sobem do vale as neblinas
e abre rasgões o crocitar
dos corvos na tarde.

Uma ânsia qualquer detém o vento.


Soledade Santos, Sob os teus pés a Terra; Artefacto, 2010

9.9.13

Conversitas e um sítio bonito

Chamaste vamos ver as framboesas.

Delicado silêncio dentro do peito,
tão inúteis as palavras.

1.
É de coisas leves, murmuras,
que fazes o teu peito,
ribeiro sereno a reflectir nuvens ligeiras.

Flor e vento nos vidoeiros,
casa dos sonhos macios,
jardim recatado, gosto mais.

Mas no coração dos bosques, dizes,
as abelhas deslassam a quietude,
crianças impertinentes à hora da estrela da tarde.

De pés inquietos são os meninos.
Assim somos nós,
ligeirinhos como nuvens.

Parecemos carneirinhos a passear no céu,
e nos prados, coisinhas leves,
a ouvir o invisível.

2.
Sentados no tanque de pedra
os pés à tona da água
foi à tardinha, a água respirava
éramos meninos vestidos de orvalho.

Assim se vestem as tardes
basta respirar

os dedos a afagar a água
os corpos às ondas às ondas
quase líquenes à procura de repouso.

14.8.13

Para gente pragmática, raciocínio à faca. É muito prático.
Ela queria saber se, no meu caso, o início da noite
Era mais proveitoso do que o início da manhã. Passei
Sobre o proveitoso, por ignorar a taxa de câmbio, e
Respondi devagar com muito vago de permeio. Há as
Actividades do dia. As emoções perigosas. Os desatinos
Lentos. E assim por diante. Nada de muito quantificável.
 - Rigorosamente - objectou: - A noite não é melhor?
 - Melhor para quê? - quis saber.
 - Para sonhar, por exemplo.
 - Rigorosamente falando, o sonho diurno é o que
Menos esquece.
 - É impossível sonhar de dia - disse, muito mulher activa.
 - Ninguém pode ter todo o proveitoso.

Maria Gabriela Llansol, O Começo de um Livro é Precioso; Assírio & Alvim

17.7.13

Conversitas

Chamaste vamos ver as framboesas.

Delicado silêncio dentro do peito,
tão inúteis as palavras.

28.6.13

Fala ao teu neto e diz-lhe,
Meu neto, meu neto,
a boa fala é mais rara que o jade

(Robert Bringhurst, A Beleza das Armas; poema A Canção de Ptahhotep; trad. de Júlio Henriques; Edições Antígona)

Depois de falares ao teu neto,
caminha na sombra dos muros que te guardam os passos.
São pegadas legíveis
que nenhum vento soube distrair.

Fala ao teu neto,
candeia e sol maduro assim ele te vê,
e diz é bom o dia a crescer e repousar nestas sombras,
de muitos silêncios, desenhos de aprender a andar.

Se te sentares,
espera, velho a ver os meninos a sair da escola.
Trazem o sol todo. Fala baixinho
ternurento, és a luz pequenina da candeia.

 

20.6.13

Saber que não escrevo para o outro, saber que isto que vou escrever não me fará nunca ser amado por quem amo, saber que a escrita nada compensa, nada sublima, que está precisamente aí onde tu não estás - é o começo da escrita.

Roland Barthes, Fragmentos de um Discurso Amoroso; pág. 128 ; trad. de Isabel Pascoal- Edições 70, 2006.

17.6.13

Nos bosques ouve-se o cair das pinhas como passos de monges no coro sossegado depois das Completas.
O silêncio sabe às ervas amargas, mas chega-nos pela mão das cores e do cheiro à resina a ternura dos sonos sábios.

O vento das vinhas por onde passamos traz o sol que foi tear de dias luminosos

e sabe bem dormir em lençóis de cedro
ou como quem fez a casa sobre adegas de vinho bom.

28.5.13

Redacção

As pessoas distraem-se à beira do mar a piscar os olhos quando as gaivotas passam rentes às ondas.
As gaivotas são graciosas a pairar sobre as águas e não mostram a gula que levam nos bicos.

Também há pessoas que andam pelos montes e sabem o que fazem as aves, os milhanos às voltas às voltas, os chascos a ler nos tojos, as milheirinhas a bicar as sementes.
Os passaritos sabem o que procuram, não fazem voos de espanto; volitam como os campos de trigo, serenos se o vento os penteia.
A gente olha-os de frente, à luz que não incomoda o olhar.

O mar ora é bonito ora traz à vista as furnas e cafurnas que o habitam a guerrear com os ventos de dentes arreganhados de cão furioso e as pessoas não sabem lê-lo. Ficam com sofrimento nos olhos e regressam tristes a casa.
Há sempre coisas para ajustar.

Nas cidades as casas são grandes e devem ter por dentro gente que é como os morcegos: cirandam, cirandam e não vêem os vizinhos; encheram os papos e penduram-se nas tocas, calados como baratas. As baratas são muitas, mas gostam só de sítios escuros.

O ribeiro da minha aldeia é como o céu, anda por aqui e por ali, reflecte os salgueiros e abriga os pardais. Nós olhamos para ele, os olhos riem-se e caminham pelos chãos, árvores e seus ninhos; muitas vezes param.

Na minha aldeia não há contas a ajustar. Se puderes, faz lá a tua casa.
Como diz um provérbio: que os ramos verdes morem no teu coração e sejam ninho azul.

Hoje, sentei-me no quintal.
Passa um vento benigno a pentear as margaças.
Vem dos montes, traz luzes antigas, banhos de sol.

24.5.13

Fala ao teu neto e diz-lhe,
Meu neto, no trilho do coração
assenta o teu ouvido

(Robert Bringhurst, A Beleza das Armas; poema A Canção de Ptahhotep; trad. de Júlio Henriques; Edições Antígona)

Assenta o ouvido no coração da montanha.
Deixaste lá as palavras campos de trigo
que cismaste dizer, resguardadas até ao tempo das colheitas.

São harpas antigas, sons suspensos nos salgueirais,
mistura de mar rios flautas e rebanhos,
relâmpagos desertos, sangue de que és feito.

Fala a quem deves as palavras escolhidas pelo coração.
Como quem regressa a casa.

11.5.13

O que sou roubei.
Subo à montanha sem nada nas mãos,
só com a montanha.

(Robert Bringhurst, A Beleza da Armas; poema O Canto de Jacob)


Nada guardo por nada ter para guardar.
Converto os dias na montanha que me aguarda,
nos seixos dos regatos e no miolo das maçãs
feitio dos olhos e das bocas que amaciaram,
feitos da violência e ternura,
assim é a água materna que me abençoou.

Sem nada nas mãos,
ligeiro nos dias bons, recatado se o céu é de chumbo,
vou pelo ventre de quem me espera
pequeno como quem nasce
nada tendo e sendo já coisa pouca,
que do regato nascem os seixos e a maçã amacia os lábios.