21.10.20

 

No princípio é a relação.
Veja-se a linguagem dos "primitivos", isto é, dos povos que permaneceram pobres em objetos e cuja vida se edifica no interior de uma restrita esfera de atos que têm uma forte presença. Os núcleos desta linguagem, as palavras-frase [...] designam em geral a totalidade de uma relação. Nós dizemos "muito longe", mas o zulu profere uma palavra-frase que significa: " O lugar onde alguém grita: mãe, estou perdido! E o habitante da Terra do Fogo sobrepuja a nossa sabedoria analítica com uma palavra-frase de sete sílabas, cujo sentido exato é: "Olham um para o outro, cada qual espera que o outro se ofereça para fazer o que ambos desejam, mas nenhum gosta de fazer."

Martin Bubar; Eu e Tu; trad. de Artur Morão e Sofia Favila

Paulinas Editora; Outubro 2014 – Pág. 22

 

1.10.20

 

Rascunhos e um texto mínimo

 

Primeiro rascunho 

1.

O meu amigo andava pacificado e nunca ia pelas gavetas dos papéis esquecidos e das memórias perdidas.

Não queria. 

E não subia ao sótão das malas velhas, como faz quem passou os dias em cantigas de gaiola. Não queria.

E não precisava. 

Os recados tinha-os espalhados pelas eiras da aldeia. 

2.

Dizia coisas assim.

O Sol já os leu e sabe para quem são. Vão chegando ao peito que os espera. Não preciso de mais. Penso. Agora, não preciso.

E não quero. 

Os dias e as noites que sabem de todas as coisas estão dentro do peito e, uma de cada vez, vão mostrando as palavras necessárias ao Sol e a quem respira.

Se são divertidas, se são tristes a luz e a sombra sabem dar conta. 

3.

À noite, algumas vezes, falava como quem reza.

Não vou às gavetas. Os risos e as coisas tristes durmam onde estão. Cada dia e noite sabe o que é preciso e prepara-me. O que acontecer vai ser bom. 

Somos veados a arfar ao nascer do Sol. As agulhas de luz puxam-nos os olhos e ensinam-nos os cheiros.

Sobretudo os que estão escondidos. 

Não quero saber das gavetas.

 

Outro rascunho 

Não vou às gavetas das coisas velhas, ansioso por memórias perdidas. Não, não vou.

E não subo ao sótão das malas velhas, como faz quem passou os dias em cantigas de gaiola.

Não quero. Não é preciso. 

Espalhei recados pelas eiras da aldeia.

O Sol já os leu e sabe para quem são. Vão chegando ao peito que os espera. Não preciso de mais. Penso.

Agora, não preciso. E não quero. 

Encostados ao peito bem alerta às palavras precisas que me foram sendo dadas estão os dias e as noites, que sabem de todas as coisas e, uma de cada vez, as vão mostrando ao Sol. Se são divertidas, se são tristes a luz e a sombra sabem dar conta. 

Não vou às gavetas. Os risos e as coisas tristes durmam onde estão. Cada dia e noite sabe o que é preciso e prepara-nos para o que vai acontecer.

Somos como os veados a arfar ao nascer do Sol, as agulhas de luz puxam-nos os olhos e ensinam-nos os cheiros. Sobretudo os que estão escondidos. 

Não quero saber das gavetas. 

 

Terceiro rascunho 

Não subo ao sótão curioso de velharias, não, não subo. Não quero subir.

Vá subindo o Júdice, o poeta, afoito até ficar receoso do escuro como criança que não quer remexer mais papéis. 

E não quero saber de recados antigos.

Espalhei-os pelas eiras da aldeia.

O Sol já os leu e sabe para quem são. Vão chegando ao peito que os esperou.

Não preciso de mais por agora. Penso. 

 

Texto final

Não abras as gavetas onde a memória

se arrumou 

Alice Vieira “O que dói às aves


Não subo ao sótão curioso de velharias, não, não subo.

E não respigo nas malas velhas como faz quem passou os dias em cantigas de gaiola. Não quero. 

Espalhei recados pelas eiras da aldeia.

O Sol já os leu e sabe para quem são. Vão chegando ao peito que os esperou. Não preciso de mais por agora. Penso. 

Encostado ao peito em bom recato está o silêncio.

Não é preciso mais.