29.5.12

Não é, irmão?

1.
Ao levantar, abro sempre um livro, como a dar os bons dias ao meu irmão.
Hoje era o "Mel" de Tonino Guerra.

Calhou-me o Canto Décimo Sétimo,
"Meu irmão caminha de mãos atrás das costas"
e, no fim,
"dispara peidos sonoros
como os de nosso pai."

2.
Bom dia, irmão.
Também me lembro do nosso avô. Fazia isso muito bem,mas abafava-os a resmungar muito alto.

Às vezes, a gente precisa de dizer alguma coisa,
"nem que seja uma tolice",
não é, irmão?

3.
Mas, também, olha. Lembro-me das trovoadas.
Não se percebe se os relâmpagos nos distraem dos trovões, ou se é Santa Bárbara a preparar-nos o dia à volta do lar, como o do avô, brasas vermelhinhas, a panela de ferro.
O avô rezava o terço e ia-nos semeando nos olhos um silêncio grande, de boa noite.

21.5.12

Colhe a rosa
esquecida
no caminho

beija-a depois

Suave
a luz te é
reservada.

-Amélia Pais; em: "Ao longe os barcos de flores"; 01/04/12-

(Boa noite, Amélia)


16.5.12

Os Amigos

Esses  estranhos que nós amamos
e nos amam
olhamos para eles e são sempre
adolescentes, assustados e sós
sem nenhum sentido prático
sem grande noção da ameaça ou da renúncia
que sobre a luz incide
descuidados e intensos no seu exagero
de temporalidade pura

Um dia acordamos tristes da sua tristeza
pois o fortuito significado dos campos
explica por outras palavras
aquilo que tornava os olhos incomparáveis

Mas a impressão maior é a da alegria
de uma maneira que nem se consegue
e por isso ténue, misteriosa:
talvez seja assim todo o amor

José Tolentino Mendonça; De Igual para Igual
 - Assírio & Alvim

15.5.12

As giestas

Feliz aquele que administra sabiamente
a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias

(Ruy Belo; O Problema da Habitação - Alguns Aspectos)

Examinemo-nos bem, meninos muito sérios
a escandir as palavras que ainda não disseram.

Não é a alegria das giestas que doura as tardes de domingo;
baloiçam sem saber, não dão conta dos dias.

Não é o amarelo do monte a vestir-nos, como quando vagueávamos pelas colinas,
que prepara o crepúsculo. Mas as luzes é bom.

Bendito o fogo amarelo das flores de domingo,
como quando nos despíamos ligeirinhos como o vento.

A quem reparte os olhos pelos campos a vida louvada seja.

6.5.12

Se fosse Deus, pintava um quadro:
uma porta meio aberta e a escada suave;
no cimo, a minha mãe.
E arranjava maneira de o sorriso dela estar a dizer:
a porta está como a deixaste
e sei que me tens os olhos.

Não dava nome ao quadro
e todos iam entender que era o retrato do céu.

5.5.12

Era na cadeira da tarde que analisava as palavras,
monge a entrar no silêncio peregrino dos campos largos.

Eram poucas, bom dia, que os filhos te sorriam à mesa,
e iluminavam a noite.

As palavras eram como alpendres,
açafate de uvas maduras.

De vez em quando paramos de crescer

De vez em quando paramos de crescer
é das raízes afundadas na terra doce
do sol esplendendo só por esplender.

De vez em quando voltamos a crescer
não cabemos na casa da pele do olhar
ruímos para dentro tudo por fazer outra vez.

Entre um dia e outro somos só caminho
vigília breve na terra áspera
e mãos transidas de luar

Soledade Santos
em: nocturnocomgatos.weblog.com.pt

1.5.12

Assimilou os nomes da luz e as sombras do chão.
Olhos do trevo que guarda o tempo airoso,
alegria bem temperada foi a sua herança.

Nas tardes de morrinha, ficava à janela a olhar os vidoeiros.
Se as gotas tremeluziam, sentava-se na cadeira dos velhos a ouvir o vento a respirar
e sabia como o mundo era feito.