1.12.21

 


1.

Em dias de frio lindo, vamos à rua, agasalhados em boas conversas e chega-nos a lembrança de quem anda sem casa nem roupa. E o dia sabe mal e fica feio. 

Dizer assim é melado; e é reacionário. E é.


2.

O eremita saiu da cabana a ver se os pés aqueciam. A manta agasalhava, mas os pés tinham frio. Caminhou a olhar o chão, a pensar nas aves do céu e nas ervas dos caminhos.

Os pés mornos, voltou à manta, pegou o “Livro de horas” e ficou consolado, a rezar salmos e antífonas.

E o dia não lhe foi frio. Nem feio. 

Esqueceu-se do que foi dito: as raposas têm tocas onde se recolhem e as aves do céu têm a quentura das penas e ninhos que as recebem e acalmam.

E não se lembrou de quem não tem onde repousar a cabeça.


14.7.21

 

O velhote precisou de muitas noites de mau dormir para entender um sonho que vinha e fugia como relâmpago de trovoada afastada. 

Ao chegar da escola, sentava-se numa mesa de toalha branca. A mãe estendia bocados de pão.O pai e os irmãos também estavam lá. 

Quando percebeu o sonho, ficou contente. 

Ficava muitas vezes à janela a pensar na mesa de quando era menino.

21.6.21



Os pés livres não apagam a luz.

Ao entrarmos em casa é bom deixarmos os sapatos lá fora.
Mesmo os caminhos bons deixaram agarradas silvas e seus picos: eram longe da música que deixámos acesa. E as ruas eram escuras. Seiva morta.

Às vezes, não há tempo para colher as amoras.
A montanha procurada foi sonho perdido.
Ainda não é tempo de rir.


Chegou cansado.
- A casa cheira a tangerina!
Senta-se ao lado do piano.
- Casa linda!

A música chegou à janela e a casa ficou cheia de risos.
Montanha sagrada.

26.3.21


 1.

Foi-nos dito que “no princípio era o Verbo” e começámos a pensar nas diferenças das línguas: se a nossa “Palavra” corresponde ao “Logos” dos gregos na sua densidade de significados – palavra, razão, discurso; se Logos traduz bem “dabar” dos hebeus – o que opera e faz, e também as coisas que cada um sabe encontrar no que ouve ou vê. 

E é melhor ficarmos calados.

As palavras são flores gaiatas, e vestidas de silêncios. Nunca se mostram iguais. Guardam escondem muitos sentidos. É preciso encontrá-los. 

2.

Angelus Silesius disse-nos que “é através do silêncio que ouvimos” (1).

No Horeb, o que Elias procurava não lhe foi trazido nem pela ventania, nem pelo fogo, nem pelo barulho da terra a tremer. Foi um “murmúrio de brisa leve”, “silêncio subtil”, que lhe pôs defronte aquilo que procurava (2). 

3.

Seja-nos dito: no princípio era o silêncio. O espírito há-de voltar ao coração como o de Laertes quando os olhos viram quem esperava (3).


(1) “A rosa é sem porquê”, trad. e prefácio de José Augusto Mourão - Vega Passagens, pág. 51.

(2) 1 Reis, 19, 12.

(3) Odisseia, XXIV, 345.