31.1.08

A Espera

(…)

Existe uma cenografia da espera (…)

O cenário representa o interior de um café; marcámos um encontro, estou à espera. (…).

A espera é um encantamento: recebi a ordem de não me mexer. A espera de um telefonema tece-se, assim, de pequenas proibições, que vão até ao infinito, até ao inconfessável: impeço-me de sair da sala, de ir aos lavabos, até mesmo de telefonar (para não ocupar o aparelho); sofro se me telefonam (pele mesma razão); desespero-me a pensar que, a tal hora, terei de sair, arriscando-me assim a faltar ao apelo benfazejo, ao regresso da Mãe. Todas estas diversões que me atraem seriam momentos perdidos por causa da espera, das impurezas da angústia. Pois a angústia da espera , na sua pureza, exige que eu esteja sentado num café, ao lado do telefone, sem fazer nada.

(Roland Barthes - Fragmentos de um Discurso Amoroso; edições 70)

26.1.08

Quando tenho a alma suja,
já não vou pelos padres santos do deserto que
castigavam o corpo.

(Conheci um monge que me contou que, no tempo em que castigava o corpo, se sentia todo sujo e não sabia da alma.
Que tomava um banho e até pensava que a água era a alma a morar-lhe nos olhos.)

Às vezes a alma vai suja
como sangue violentado em linho que já foi limpo.

(O monge falou-me do Cântico dos Cânticos, mas dizia sempre “sabes, deve ter sido lindo, mas foi há muito tempo. Gosto de ler, mas basta-me a água que me lava”.)

Já experimentei:
- sentar-me a comer chocolates e a metafísica gargalhou…
- ficar no banco do jardim; as aves nem me viram…
- etc.

(Recordo-me de que o monge dizia sempre o que devia e não usava etc. Não precisava: um minutinho dele a falar era do tamanho da música das estrelas.)

Vou fazer assim:
amanhã, o Sol nasce como sempre fez
vou sentar-me a olhá-lo

atrás dele vêm os pássaros.

(Aprendi isto por mim.)

E ainda vou fazer:
deixar-me voar, voar e ir com eles:
eles viram quem me falta e novas me hão-de dar.

E a alma vai ficar limpa lençol de linho.

22.1.08

A VIAGEM DEFINITIVA

Ir-me-ei embora. E ficarão os pássaros
Cantando.
E ficará o meu jardim com sua árvore verde
E o seu poço branco.
Todas as tardes o céu será azul e plácido,
E tocarão, como esta tarde estão tocando,
Os sinos do campanário.

Morrerão os que me amaram
E a aldeia se renovará todos os anos.
E longe do bulício distinto, surdo, raro
Do domingo acabado,
Da diligência das cinco, das sestas do banho,
No recanto secreto do meu jardim florido e caiado
Meu espírito de hoje errará nostálgico...
E ir-me-ei embora, e serei outro, sem lar, sem árvore
Verde, sem poço branco,
Sem céu azul e plácido...
E os pássaros ficarão cantando.

(Juan Ramón Jiménez - Trad. de Manuel Bandeira)

17.1.08


que as casas estejam sempre inacabadas
sou de rebanho em transumância

15.1.08


De flores e esmeraldas,
Nas frescas madrugadas escolhidas,
Faremos as grinaldas,
Em teu amor floridas,
E num cabelo meu entretecidas.

S. João da Cruz - Poesias Completas (trad. de José Bento)

13.1.08


1

As manhãs andam coalhadas.

O códão é navalha a abrir a terra, mas a geada estende-se a receber o sol.

2

E também deve haver uma maneira quase matinal de fazer das palavras manto estendido onde se acorde criança a aprender a balbuciar os dias.

3

E também deve haver um banco de pedra no entardecer onde se goste de ver o dia todo, parando os olhos onde apetecer.

8.1.08

Conversitas

- Quem anda à chuva molha-se.
- E quem não anda está seco?
- Conversa mais seca!...

- Queres que vá ver se está a chover lá fora?
- Sim. E os cabelos molhados caem-te bem.

- Está mesmo de chuva!

- Vamos passear?
- E ficamos os dois com os cabelos molhados...

6.1.08

O miúdo que vende jornais naquela cidadezinha de província parada pacata patega é a primeira coisa que se vê na cidade, parada pacata patega. Quando chega o comboio da noite, a voz do pequeno ardina (que não tem pai nem mãe) corre pelas ruas e praças espanta a passarada bate nos prédios faz abrir portas e janelas fura a escuridão

saem gritos dos seus olhos a sua cara de menina pede beijos e carícias uma ternura diferente

as pessoas compram-lhe o jornal porque não podem comprar o silêncio do pequeno órfão e toda a cidade é um remorso inexplicável, inexplicável. Irás comigo, irmão, para a próxima jornada. Até ao Outro Lado, seremos dois.

(Luiz Pacheco - Os Namorados)




2.1.08

Lembro-me bem.

O Menino Jesus tinha-me dado três berlindes. Um, muito vermelho; o outro, quase verde. Gostava mais do que tinha tantas cores como o vestido que a minha mãe às vezes levava à missa.

No chão estava uma manta para eu brincar.
Lembro-me de ter brincado como vou contar.

Segurava os berlindes na mão esquerda. Depois, poisava um e dizia o pai está aqui. Com muita atenção, media três palmos e punha outro que era a mãe. Antes, deixava um sopro em cada um. O outro era eu e não tinha sítio certo. Às vezes até ficava seguro nos dedos. Depois de olhar muitas vezes, ia pondo, aos saltinhos, o pai de encosto à mãe.

E, quase a dormir, lembro-me bem, levavam-me para a cama e olhava pelo canto do olho.

Os três berlindes estavam encostadinhos.