25.12.11

Saíamos para os campos muito cedo, a manhã arbusto ainda a bordar o dia.
Líamos a sombra e a luz, de cada uma colhendo a refeição suficiente.

Em cada tarde bastam-nos migalhinhas de pão, bondade da luz bem distribuída,
e nenhum frio nos vai arrefecer a noite. Nem os dias.

11.12.11

Vi nos claustros palavras essenciais, e aprendi a sabê-las em jogos de enleio e fuga, amantes de muita sedução.
Apareciam da aurora até vir o dia cheio, luz furta-cores em negaças, fugindo à memória dos olhos; era preciso esperar mais manhãs. Todos os dias.
O tempo trazia sempre luz, mas as palavras cirandavam a luzir. Despiam-se fechavam-se, deixando sempre pontas de mistério.

O tempo ainda traz as alvoradas e a luz maior.
São outras as palavras e é igual o enamoramento.

1.12.11

Conversitas

Nem sempre é o lado da luz a indicar o caminho.
Como na sedução, é preciso o lado da sombra. Dizias.

25.11.11

Tens a casa cheia. Senta-te e observa.
Os amigos conversam e os olhos riem. Alegra-te de coração.
As crianças dormem serenas. É sábia a tua casa.
Sabe gerir a alegria. Pelos dias que te faltam.
A alegria invisível é duradoura como o sabor do pão.

14.11.11

Espalhamo-nos por campos e chãos verdes
jogamos às adivinhas
procuramos a penumbra das pontes
espreitamos escondemo-nos ao faz de conta.

Somos pássaros a fintar o vento.

11.11.11

OS AMIGOS

Esses estranhos que nós amamos
e nos amam
olhamos para eles e são sempre
adolescentes, assustados e sós
sem nenhum sentido prático
sem grande noção da ameaça ou da renúncia
que sobre a luz incide
descuidados e intensos nos seus exagero
de temporalidade pura

Um dia acordamos tristes da sua tristeza
pois o fortuito significado dos campos
explica por outras palavras
aquilo que tornava os olhos incomparáveis

Mas a impressão maior é a da alegria
de uma maneira que nem se consegue
e por isso ténue, misteriosa:
talvez seja assim todo o amor

José Tolentino Mendonça; De Igual para Igual; Assírio & Alvim

1.11.11

É preciso começar a ler logo de manhã; as palavras estão a nascer e é preciso ver-lhes o crescimento.
É assim na minha aldeia e, às tardinhas, o sol vai adormecendo em sabedoria.

26.10.11



Às vezes, a gente sonha desta maneira: estamos a dormir, tudo arrumadinho.
É como descer a montanha, depois de ver o mar e pôr a recato os pensamentos que nos lavaram.
E o sono sabe bem, ainda que venha alguma tristeza.

20.10.11

As nuvens vão-nos levando
doidice vagamunda
bico de ave a dizer o ninho
lume húmido das rosas
açafate maduro.

Doidinhos.

16.10.11

Os homens correm nas estradas
os meninos olham as flores
formas bonitas do céu

as estradas estragam os campos
e não sabem o tamanho dos rios

10.10.11


O relincho dos cavalinhos.
Os filhotes abandonaram o trilho da manada nos montes vadios;
vem o inverno e as narinas duvidosas buscam o bafo morno dos estábulos.

Somos da água e do fogo.

9.9.11


POR el camino encuentras a tu Ulises, y eso es um problema. Quiere que duermas con las velas desplegadas y el áncora alzada.

(Odysseas Elytis - Dignum est y otros poemas; Traducción, selección y prólogo de Cristián Carandell; Galaxia Gutenberg-Círculo de Lectores)

1.9.11



A pensar no Alan que faz anos hoje

As palavras deviam ser como o sono
e o silêncio
gomos de laranja
dentinhos de romã
meninos de olhos fechados


20.8.11

Ulisses


"Passámos por essas árvores: tu disseste-me os nomes
e explicaste como era cada uma."
(Odisseia, XXIV, 338-339; trad. de Frederico Lourenço)

Siga Ulisses em nau fina  e veloz,
por marés e ventos certeiros,
não por Penélope: ainda pode sonhar
e tem muitas noites para tecer.


Por Laertes: o filho lhe demora
e é frágil o tempo das palavras que lhes faltam.
E pelo nome das árvores
de quando adormecia devagarinho.



4.8.11

Nausícaa

(Nausícaa; Frederick Leighton)


"Assim falou; e foi sentar-se na lareira, no meio das cinzas,
junto ao fogo. E todos permaneceram em silêncio."


(Odisseia; VII, 154-155; trad. de Frederico Lourenço)


O divino Ulisses abraçou os joelhos de Arete e soltou as palavras que trazia ensaiadas: ardia-lhe no peito a fome do regresso, e foi sábio a pedir e nos gestos.
De Nausícaa a capa cobria-lhe o sofrimento, e não era do que sua mãe imaginara.

"Vai agora, ó estrangeiro: a cama está feita."

Ulisses adormeceu, mais distraído que cansado.

Nausícaa, erguida à aurora de lindos dedos, lira de límpido som, vai voltar à praia pelo lume da alegria.

(Siga Ulisses para a cidade que o espera, de muitos fingimentos também, onde tecer e destecer é trabalho que mata o tempo, e outros matadores são precisos.)

Nausícaa, perto do meio dia, vai regressar, corpo de música lavada, na companhia merecida.
E o pai benevolente há-de sorrir a dizer:
a nossa filha traz o que escolheu; não foram os deuses a conduzi-la.

E todos irão dormir nos leitos que prepararam.

(Nota: não consigo dar ao texto o arrumo que quero)

14.7.11

Da Ternura

No fundo da ternura há um som de lágrimas -
água clara onde o sol do entardecer
odoroso se deteve;
vem das lembranças, cristais de sal,
chispas na pele esfolada pelos jogos
infantis e as perdas
de que a vida nos preencheu os dias.
Companheira amável do desencanto,
outra forma afinal de dizer mágoa.

Soledade Santos; "Sob os Teus Pés a Terra"; Artefacto

12.7.11

(Criança assombrada de noite mal dormida, a neblina encharca-lhe os olhos, jardim pasto informe, mar ilegível, remoinho a espantar as raízes)

Anda, maré irrequieta,
vamos aos sítios luminosos
amantes a sair das ondas.
Ajeitamo-nos os cabelos
e subimos a praia
sabemos onde repousar.

Louvada seja a voz dos dias,
areias fofas aventuradas,
memória do linho limpo,
palavras percebidas,
do mar lavado e as da vinha brava,
como quem respira.

Louvadas as tardes
riso claro de criança
mar sereno
jardim acolchoado.

Boa tarde,
mão varredora das nuvens.

5.7.11

(Fotografia de Tiago Silva)

Dizes
sei onde estás

sabedoria inútil
penso.

E perguntas se vejo os pássaros

oiço-lhes as palavras
digo baixinho
com alguma alegria.

8.6.11

Sei palavras de coração,
luz manhã sorriso,
tristeza tardinha mar:

guardo-as em ventre fofo
e são a minha bagagem.

E retrato no passaporte.

30.5.11


"A terra ao Sol dá nascença
todas as manhãs"
(Robert Bringhurst; "A Beleza das Armas")

A manhã é macia
e há vontade de recolher a luz graciosa,
Ulisses a guardar a semente do fogo
conchinha protegida do vento.

No entanto, desenha a tua casa
gesto largo do semeador.

21.5.11

(foto de Tiago)


Ouve-se ao longe
tenho pés de vento
sou cavalo solto crina de muitas cores
a voar por cima dos prados.

Olho os campos inocentes,
breves.

Nota: esta fotografia foi-me dada e vinha assim:
O que de relance parece liberdade é prisão.
A casa, outrora verde,
cinzenta veloz, já nem vemos.
Ficou parada nos relâmpagos
que arrastam a solidão...

(Obrigado, Tiago)

7.5.11

(Foto de Tiago Silva)
Co'a candeia de estrelas * saí rumo aos céus
(Elytis)
Nos dias de acordar cedo,
o pinheiro do quintal aleija a memória.
De noite, estirou-se sem jeito.

Único sonho sério, examino-o,
e vejo as palavras, peças de roupa,
as que nos vestiram e as da transparência,
a abanar, doidas indefinidas,

sons e sentidos versáteis, alados. Informes.
Tão longe das nascentes.

Que fazer da frescura dos prados
e das palavras que organizámos?

5.5.11

Diurno

Eternas são as tardes
em que o cheiro da maresia
se pendura nos cabelos molhados
pelo suor amável do dia

e a doçura de alfarrobas
no verniz escuro das vagens
entre os lábios é como
outros lábios carnudos.

Soledade Santos; Sob os teus a terra - Artefacto

1.5.11


Disse que te guardo nos olhos. Estás lá como criança na barriga.
Quando vieres, será como a primeira luz: vemo-nos logo, e pelos mesmos olhos,
e vamos rir até chegar a minha noite.
Depois, vou ficar agasalhado nas tuas pálpebras.

27.4.11


Nas respostas não vemos o que as nossas palavras disseram.
É nos olhos. Não é bem nos olhos,
é na maneira como os levamos depois do olhar.
E também no comportamento da boca
e como passeamos os dedos pelo cabelo.

16.4.11

Acolho-me ao outeiro que me suspende os olhos
para me falares ao ouvido,
e durmo no murmúrio das palavras

As palavras são as tecedeiras da casa

Também sei o caminho do sol,
lavrado na tua boca

É bom estar à porta de onde se mora,
e respirar de mansinho

7.4.11

Os pássaros são entendedores
nos primeiros frios vão pelo repouso das árvores

e as árvores conhecem-nos do tempo
onde nascemos.

O tempo é como as crianças a brincar ao domingo
os velhos olham
os meninos andam a voar
e as casas não ficam desertas.

1.4.11

À mesa

- Avô, sou um pirata sem cara de mau.
- Mas tu és menina.
- Sou um pirata, avô.

- Pronto, és pirata.
- Sou um pirata, avô. Como na escolinha. Sou um pirata.
- Desculpa, esquecia-me.
  És um pirata, e não tens cara de pau, nem perna de má.
- Avô, cara de mau, esqueceste-te.
- Não precisas de gritar, menina. Os piratas não berravam.

- Avô, os piratas não falavam alto porquê?
- Posso explicar baixinho?
- Porquê baixinho?
- Os piratas também falavam assim.
- Está bem.

- À roda dos piratas o vento nunca parava.
  E era o vento que levava as palavras de umas pessoas para as outras.
  Pegava as palavras com muito jeitinho.
  Segurava-as pelos dedos e ia-as levando até aos barcos dos outros.
  O vento sabia que as palavras gostam de mudar de sítio.
  E os outros sabiam as ideias dos piratas.

- Avô, não acredito nisso, mas a história é bonita.
- E é.
- Avô, é bom jogar ao faz de conta.

27.3.11

"Houve uma tarde e uma manhã:foi o terceiro dia"(Génesis, I,13)

"Guarda a manhã Tudo o mais se pode tresmalhar" (Daniel Faria, Explicação das Árvores e Outros Animais)

A mulher descansa a meio da manhã, Deus a respirar no terceiro dia, o das ervas verdes com sua semente, e das árvores sem malícia. Sentada no campo, governa o dia, que a noite e seu exército ainda tarda. Dentro do dia é assim a mulher, semente de árvores não perversas, que o ventre da luz não é do bem nem do mal nem conhece os abismos da noite. A mulher guarda as manhãs dentro da luz.

22.3.11


Não quiseste dizer: vou.
E fui pela chuva,
a ler as últimas gotas, frágeis.
Maneira tonta.

Mas entendi as nuvens habilidosas:
afago e logo adeus.
Cheiro de violeta, andorinha filada ao sul.
Céu vadio.

16.3.11


Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
(Ricardo Reis)

Sentemo-nos na mesa de madeira, feita à tarde,
virada à aurora.

Enlaça os dedos,
as rosas frescas que restam;
e os olhos vejam o mesmo sol.

Procuremo-nos as mãos,
ternura dividida,
espanto de criança no mar infinito;
sentemo-nos silenciosamente.

Dos dedos fluam os rios até ao mar,
e tarde o inverno;
fiquem-nos estas rosas,
bocas roxas de vinho.

Enlacemo-nos. Silêncio.
O outono seja ainda nosso,
sentados ao pé um do outro.

O dia ainda vai nítido,
aurora cor-de-rosa.



12.3.11

Secas, bailam folhas sobre a relva e
o lençol tranquilo da geada
é uma canção do outono.

Integral, a noite:
no vento
no frio
no luar pacificado.


Aires Montenegro; Oferenda Oriental - Palimage - Coimbra, 2011

Ontem, estive na apresentação de poesia do meu amigo Aires Montenegro - o Aires tem um blogue: http://apedraqueurra.blogspot.com/

Oferenda Oriental é poesia fio d’água, flores de pessegueiro, paz procurada.


2.3.11

Na meia aurora, o teu sono é flor de vento,
ar lavado.

Vindo a manhã toda e as neblinas,
lembro-te vinho vermelho;
e rio tranquilo.

15.2.11

Sítio

No cimo do choupo restam três folhas
solitárias, só três:
quietas cinzentas ao vento à chuva.
Olhando-as, sei que outro ano passou.

E eu, que farei eu da minha fidelidade?

- Soledade Santos ; Sob os teus pés a terra- Artefacto

2.1.11

Pedra de Sísifo II

Agora medirei o tempo
Pela vara erguida ao meio dia
Pela areia a descer o coração
E o sono

Pela cinza no cabelo de Jacob
Pelas agulhas no colo de Penélope

Agora lavarei a minha face
Sem perturbar os círculos da água
Medirei o tempo pelo peso da pedra
De Sísifo, perto do cimo
E pelo musgo que dificulta
a firmeza dos seus pés

Partirei sozinho na viagem
Sem nenhuma pedra ou senda repetida
E no tempo repetido acharei uma saída
Uma manhã depois de uma manhã

Daniel Faria; Explicação das Árvores e de Outros Animais
Fundação Manuel Leão, Porto, 1998