24.7.07

Escrevendo

Escrevendo quis eu
Salvar a minha alma.
Tentei fazer versos
Não consegui.
Tentei contar histórias
Não consegui.
Não se pode escrever
Para salvar a alma.
A rendida parte à deriva e canta.

Marie Luise Kaschnotz - Trad. de Paulo Quintela

Nota: por uns tempos, vou derivar.
Bons dias.
Beijos.
Abraços.

20.7.07

Cartas da tarde

(Foto de Marco Pedrosa)

A manhã soprou doce, o chão trouxe as lembranças dos primeiros desejos e a tarde vai calma.

Vamos para o areal, para o sítio onde é costume chegar a ponta da maré. Aquela curva da rocha, onde, a princípio, a manhã nos acordava; era lá que vinha uma onda atrevida fazer cócegas nos corpos. Ríamo-nos: o mar a pensar que tínhamos gasto as forças todas e a querer continuar as carícias.

Vamos para o areal, por desejos que abençoem a tarde.

19.7.07

Escrevo

Escrevo já com a noite
em casa. Escrevo
sobre a manhã em que escutava
o rumor da cal e do lume,
e eras tu somente
a dizer o meu nome.
Escrevo para levar à boca
o sabor da primeira
boca que beijei a tremer.
Escrevo para subir
às fontes.
E voltar a nascer.

Eugénio de Andrade, Os Sulcos da Sede.

18.7.07

O poeta pede pão


um pão que saiba a pão,
se a alegria não sabe,
um pão que saiba a sol
e ao mar do sal.

um pão que saiba a chão,
se a amor não sabe,
um pão que saiba a seiva
e a lábio de mulher.

um pão que saiba à mão
de quem o faz.
um pão que saiba,
mesmo que pouco, a paz.

António Rebordão Navarro, Longínquas Romãs e alguns animais humildes - Selecção e prefácio de Francisco Duarte Mangas - ASA

15.7.07

O princípio


Dois gregos estão a conversar: talvez Sócrates e Parménides.
Convém que nunca saibamos os seus nomes; a história, assim, será mais misteriosa e mais tranquila.
O tema do diálogo é abstracto. Aludem por vezes a mitos, de que ambos descrêem.
As razões que alegam podem abundar em falácias e não chegam a um fim.
Não polemizam. E não querem persuadir nem ser persuadidos, não pensam em ganhar ou em perder.
Estão de acordo apenas numa coisa; sabem que a discussão é o não impossível caminho para chegar a uma verdade.
Livres do mito e da metáfora, pensam ou tentam pensar.
Nunca saberemos os seus nomes.
Esta conversa entre dois desconhecidos num lugar da Grécia é o facto capital da História.
Esqueceram a oração e a magia.

Jorge Luís Borges, Atlas; trad. de Fernando Pinto do Amaral (Obras Completas, vol. III. Editorial Teorema)

14.7.07

Pela manhã, procura as palavras que expliquem o dia. Vão chegando, uma a uma. Todas trazem gotas de água, pingos de sal, a cor do rubi, pétalas breves mas pétalas e as formas todas da espera.

Pela tarde, uma a uma, vão-se recolhendo. Mas as formas da espera continuam a tremeluzir.

11.7.07

Hoje, comecei assim: no rosmaninho estava um passarinho morto. Pelas penas, era pintassilgo e deve ter sido caída dos primeiros voos.

Veio à memória aquilo de Catulo “passer mortuus est meae puellae”. Mas não, que aqui as bicadas dos pássaros querem-se na fruta das árvores e nas amoras…

Plantei o corpito ao lado do diospireiro; aquele que não chegou a ser músico é alimento da árvore trigo dos deuses.

E os diospiros que estão a tomar corpo devem trazer alguma música. Lá para os primeiros frios.

9.7.07

Quanto à observação de mim mesmo, obrigo-me a isso, quanto mais não seja para entrar em composição com este indivíduo junto do qual estarei forçado a viver até ao fim, mas uma familiaridade de sessenta anos comporta ainda muitas probabilidades de erro. No seu aspecto mais profundo, o meu conhecimento de mim próprio é obscuro, interior, inexpresso, secreto como uma cumplicidade. No seu aspecto mais impessoal, tão gelado como as teorias que eu posso elaborar acerca de números: emprego o que tenho de inteligência para ver de longe e de mais alto a minha vida, que se torna a vida de um outro. Mas estes dois processos de conhecimento são difíceis e requerem, um, uma penetração no nosso íntimo, outro, uma saída de nós mesmos.

Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano; trad. de Maria Lamas – Editora Ulisseia

5.7.07


Ir ao quintal e escrever: entre margaças, a papoila seguidora do vento prende os olhos.
Entrar em casa e ler de Eugénio de Andrade:
"Inclina-te como a rosa
só quando o vento passe."

Dá vontade de safar bem safado o que se escreveu. Mas, por causa da papoila, embora com muita pobreza...
Cada um escreve com o céu onde mora!

2.7.07

O choro dos filhos é filho do vento:
sabe explicar se é fome, se de dor grande.

Não estão aqui as palavras todas:
o coração ainda as guarda.