25.2.20



“A rosa é sem porquê” *

Sorria ao pensar na morte.

Às vezes, era visto a rezar como quem segura na mão uma flor em dia de vendaval.
As palavras não lhe fugiam, as dúvidas é que o atormentavam. Estava vestido de dúvidas. Os irmãos notavam. Olhavam-se e outras dúvidas os afligiam.
Aquele irmão sofria, isso percebiam, já tinham conversado. Do sofrimento do corpo.
Os outros sofrimentos eram sabidos. Alguns também eram de todos. Bem conhecidos e conversados.

O irmão olhava como quem não vê. Parecia ser arrastado. Como a flor a fugir com os ventos.

Numa manhã marcada para se encontrarem,  ao chegarem à porta da cabana do irmão, viram-no sentado na pedra de musgo. Os olhos estavam perdidos, mas o rosto sorria. Não respondeu aos cumprimentos da chegada.
E todos se lembraram de uma conversa que tiveram: “Deus é nosso irmão. Está connosco. Não gosta de nos ver a sofrer muito.

Todos deram graças.

 * Angelus Silesius

Colmeal da Torre, 25/Fev/20

16.2.20




Vestem lantejoulas e falam e falam.
Temos homem, temos mulher; assim é que é.

O gato anda divertido a murar as toupeiras do quintal, que das gralhas há muito se desinteressou.
Sabedores velhos são os gatos.

Colmeal, 4/Maio/2014

15.2.20



“A rosa é sem porquê” *


O eremita meditava no fim da tarde, as ervas a entrarem-lhe no peito. O tempo era tranquilo e o chão estava grande. E, porque nas palavras de todos os dias era sempre cuidadoso e pequeno, às vezes, antes de adormecer, dizia coisas simples com muitas palavras: o céu está calmo e ajuda as raposas a procurar o sítio do descanso, e eu tenho musgo e uma pedra para repousar o coração. Os pássaros sabem onde dormir. Durmo como os pássaros.

Sabia que isso era modo comprido, envergonhado, e simples, de dizer boa noite.
Ficava menos sozinho.

Fazia-lhe bem jogar com palavras como às crianças fazer desenhos no céu.

Conhecia o cheiro das flores e a maneira como os aromas andavam no bosque de mistura com as folhas. Eram pontas de luz e de cores. Se precisasse de falar, bastava olhar o vento. E os pássaros olhavam. E não era preciso brincar às palavras.
Nem dizer boa noite.

O bosque do eremita era quase divino. Não tinha árvores do bem nem os frutos eram do mal.
E já tinha esquecido a maneira como as coisas haviam aparecido. Mas sabia que tudo era bom. Tudo tinha sido bom.
Algumas dúvidas, guardava-as. Tinha razões.
Muitas vezes, ao dizer “Creio”, ficava a pensar. E baixava a voz.

Também não andava enganado ao dizer muitas palavras como as que substituíam “bom dia”, “boa noite”; sem adornos.
Poucas vezes dizia “o céu está calmo e ajuda as raposas a procurar o sítio do descanso, e eu tenho musgo e uma pedra para repousar o coração. Os pássaros sabem onde dormir. Durmo como os pássaros”. Sabia que isso era maneira de desritualizar um cumprimento. Conhecia ritos, mas queria-os poucos e pequenos.

Como quem reza, era assim que percebia os ritos. Sóbrios, com a solenidade necessária.
E ficava sentado em sítio sozinho. A libertar-se do que não era bom.
Gostava de estar assim, e também sorria ao pensar na morte.

Era divino o bosque do eremita. E simples como as rosas. Despreocupadas.

* Angelus Silesius

Carreiro da Lama, 15/Fev/20 (pedindo benevolência a quem passar por aqui).

14.2.20



O eremita (continuação)

Como quem reza, era assim que percebia os ritos. Sóbrios. Só assim tinham a solenidade necessária. Ficava sentado em sítio sozinho. A libertar-se do que não era bom.
Gostava de estar assim, e também sorria ao pensar na morte.

Era divino o bosque do eremita. E simples como as rosas. Rosas despreocupadas.

Carreiro da Lama, 14/Fev/20

13.2.20




O eremita (continuação de 29.1.20)

Conhecia o cheiro das flores e a maneira como os aromas andavam no bosque de mistura com as folhas. Eram pontas de luz de cores misturadas. Se precisasse de falar, bastava olhar o vento. E os pássaros olhavam.
E não era preciso brincar às palavras. Nem dizer boa noite.
O bosque do eremita era divino. Não tinha árvores do bem nem os frutos eram os do mal. E já tinha esquecido a maneira como as coisas haviam aparecido. Mas sabia que tudo era bom. Tudo tinha sido bom. Algumas dúvidas, guardava-as. Tinha razões.

 Muitas vezes, ao dizer “Creio”, ficava a pensar. E baixava a voz.
Também não era capaz de se iludir dizendo muitas palavras como as que substituíam qualquer “bom dia”, “boa noite”, sem adornos. Poucas vezes dizia “o céu está calmo e ajuda as raposas a procurar o sítio do descanso, e eu tenho musgo e uma pedra para repousar o coração. Os pássaros sabem onde dormir. Durmo como os pássaros”. Sabia que isso era maneira de desritualizar um cumprimento. Conhecia ritos, usava-os, mas queria-os poucos e pequenos.

Colmeal da Torre, 13/Fev/20

1.2.20


Quando morre o Sol começa outro a nascer.
São assim os dias. Do tamanho de cada Sol.
Vemo-lo a ficar grande a dar luz às palavras.
No tempo escuro, começam outras palavras.

O Sol conhece a fonte das palavras
e nunca é igual na maneira de dizer.

“Duvida da luz dos astros”, dizia o tal William
que não estava a pensar no Sol.

O tempo não vai às fontes:
come-nos as palavras.

As que eu tinha nos olhos o tempo levou-as.

Tenho palavras guardadas na arca do peito.
“Não se esgotará a panela da farinha,
nem se esvaziará a almotolia do azeite”, (1)
ao fim da tarde quando os amigos são o Sol
que nos conhece por dentro,

pelo silêncio e pelas palavras que aconcheguei.

Experimenta sentar-te ao acabar de nascer,
ainda não sabes o que são rios e o que é o mar.
Inclina o ouvido do coração:
o silêncio vai falar; notas-lhe o cheiro.
As palavras são assim. Flores.




As flores são a casa dos frutos
e os frutos também não sabem do tempo.
Todas as horas são novas no tempo certo.
E não sei o que é o tempo. E não é grave.
Os frutos não sabem. E é bom.
“Não se esgotará a panela da farinha”
por o tempo não ser preocupação dos frutos.

(1 Reis, 17, 14)

Colmeal, 23 de Novembro, 2018