30.11.13

A casa dos diospiros

1.
Onde quero o olhar devia ser como os campos nas manhãs de geada, parados por causa do frio; mas,ao primeiro voo da pega azul e aos primeiros sopros do vento, as toalhas brancas aparecem pintadas de margaças, movimentos de tudo, recreio de meninos cor de papoila, confusão bonita como rebanhos de pastor benevolente. Mosto buliçoso a preparar invernos marotos.

Onde tenho o coração vejo sinais de mãos cuidadosas, de quem borda toalhas de pôr a mesa, ou prepara os jardins de gente especiosa. Mãos arquitectas de espaços rei e rainha e de princesa à espera do princês. Tudo muito certo. Arrumadinho.
A minha irmã, essência organizada sempre presente como no Livro dos Provérbios, dispõe as casas como a pentear os meninos do coro, ou a alinhavar lençóis de dormir.

2.
A nossa casa devia ser um recreio de meninos a comer diospiros, uma biblioteca com Eugénio de Andrade ao lado do Compendium Gradualis et Missalis Romani, da Montanha Mágica também, eu a olhar, e a minha irmã a rir e a cantar baixinho.

3.
Hoje, ao ir ao quintal, não gostei da romãzeira, arrumadinha.
Mas parecia a minha irmã e comecei a gostar de a olhar e de poisar nela o meu coração.

Todos os dias nos pomos à janela a falar sobre a maneira de a casa ficar bonita
jardim de meninos a comer diospiros
e também como uma montanha de onde olhar as coisas, as palavras e os silêncios.

Colmeal da Torre, 28 de Novembro, 2013

15.11.13

Conversitas

Há dias de boa luz
passeios vagarosos perto da água;
no entanto,
é turva a memória do que nos encheu
e para outros caminhos a bússola é desconcertada.

Mas é essa luz que tens querido
e é a importância que dás às coisas
as flores estarem no seu sítio
a água saber dos caminhos.

Somos feitos de penumbra
e o que se vê, bola breve de sabão.
O dia é semeador desajeitado.

Colmeal da Torre, 15 de Novembro, 2013

10.11.13

Dádiva

Um dia tão feliz.
O nevoeiro levantou cedo, eu trabalhava no jardim.
Os beija-flores pairavam sobre a madressilva.
Não havia na terra coisa que eu quisesse ter.
Não conhecia ninguém digno da minha inveja.
O que houvera de mal, já tinha esquecido.
Não tinha vergonha de me lembrar que tinha sido quem fôra.
No meu corpo nada doía.
Endireitando as costas, via as velas e o mar azul.

Czesław Miłosz, em Alguns gostam de poesia, Antologia; Selecção, intodução e tradução do polaco de Elzbieta Milewska e Sérgio das Neves, cavalo de ferro

5.11.13

Quando leres um poema que te leve a fechar os olhos,
joga ao faz de conta:
estás a ver a casa
ela vai indo atrás das palavras
cada vez mais pequena
quase chão
só vês as janelas.

O poema é a nossa casa.

Faz ainda de conta:
chega o dia de ir embora
o silêncio vai abrindo as janelas
uma a uma vais vendo as palavras
abelhas cheias de mel.

É a nossa casa. Fica mais um bocadinho.


Colmeal da Torre, 4/Novembro/2013
(a pensar nos filhos e netos)