Levantou-se a resmungar: há coisas que não interessam nem ao Menino Jesus.
À noite, foi à janela e gritou às nuvens que eram feias e que não interessavam nem ao Menino Jesus.
Deitou-se a resmungar e sabia que tinha sido dia de Natal.
(Foto de Marco Pedrosa)
Vem, linda peixeirinha,
Trégua aos anzóis e aos remos.
Senta-te aqui comigo,
Mãos dadas conversemos.
Inclina a cabecinha
E não temas assim:
Não te fias do oceano?
Pois fia-te de mim.
Minhalma, como o oceano,
Tem tufões, correntezas,
E muito lindas pérolas
Jazem nas profundezas.
Heine, Tradução de Manuel Bandeira
(Hoje fui ver o mar, que estava nervoso, irrequieto. Lembrei-me disto.)
Quando me fizerem as perguntas do fim, hei-de ter desculpa
-que, logo de manhã, espreito o sol e o bendigo e a tudo que vai ter luz
-que tiro o chapéu diante das alminhas da aldeia pintadas na pedra e com flores de plástico à frente
-que olho para o lado para que os namorados sigam o seu caminho e verdade
-que namoro com a verdade toda inteira.
Quando me fecharem os olhos, hei-de ter desculpa
-falei de alto aos abusadores
-bati nos vendilhões dos templos
-nunca me pus de joelhos
-não me ponho de cócoras, cuspo nos hipócritas e outros exploradores.
-A água das fontes é o meu espelho, "mesmo se é noite".
E se, naquela altura, não tiver desculpa, hei-de dizer:
-vossemecê não presta; tem a ruindade da serpe que, em tempos, pôs no tal Éden.
Está a parecer-me que vou ser respondido assim:
anda cá, rapazinho
há muito tempo que ninguém me fala assim.
Vais-me desculpar.
E eu vou dizer:
já sabia!
e é lindo o entardecer, não é?
O casulo da larva recebe a morrinha e o sol em silêncio igual. Vai ser voo e cor, visita da luz e das flores.
O coração conhece os cheiros e as cores e não se perde nos caminhos.
Aquele que acredita no girassol não meditará dentro de casa.
(René Char)
Assim de madrugada, noite já cor de borboleta, sê casulo ainda que de borboleta nocturna e só de uma manhã.
- Rosabianca, afinal não tens os cabelos verdes!
- Verdes?
- Sim. Eu pensava…Pelo menos não podia pensar que não tivesses…E que não tivesses sido salva, por mim, do fogo!
- Do fogo?
- Sim. Porque te admiras? Do fogo. E nunca foste enfermeira.
- Enfermeira?
Encostados a uma grade, viam quase sem ver Florença lá em baixo.
- Porque perguntas? Não posso gostar de ti, Rosabianca! Pensei que tinhas os cabelos verdes e que te salvava do fogo…Mas nada disso sucedeu.
Rosabianca apertou-lhe o braço com força.
- Giovanni! Se queres, pinto de verde os cabelos, subo para um quarto andar e deito-lhe fogo. Salvas-me?
- E fico ferido? Serás a minha enfermeira?
- Sim, se queres serei a tua enfermeira.
- Está bem, Rosabianca. Sobe lá para o telhado, que eu vou deitar fogo à casa.
(Augusto Abelaira; A Cidade das Flores - vigésimo nono quadro)
“Abro a minha boca * e o mar se regozija”
(Em “Louvada Seja – Áxion Estí”)
Abro os olhos e a água sem rugas traz desenhos que lhe desenhei, de pele lisa ainda, a minha. Julgava-os delidos.
O mar guardou-os e está a pôr uma a uma as pétalas no pé donde, bem-me-quer-mal-me-quer, em anos verdes as fui soprando em desenhos de abandono.
Se fosse de pôr flores no cabelo como os amantes, ainda iria recolhê-las, bem me quer.
Eu, amante imperfeito.
Água-céu de Faro, Áxion Estí.
Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que eu nunca tive
E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada
Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar
E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
- Lá sou amigo do rei -
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.
(Manuel Bandeira)
Nem sempre sou igual no que digo e escrevo.
Mudo, mas não mudo muito.
A cor das flores não é a mesma ao sol
De que quando uma nuvem passa
Ou quando entra a noite
E as flores são cor da sombra.
Mas quem olha bem vê que são as mesmas flores.
Por isso quando pareço não concordar comigo,
Reparem bem para mim:
Se estava virado para a direita,
Voltei-me agora para a esquerda,
Mas sou sempre eu, assente sobre os mesmos pés —
O mesmo sempre, graças ao céu e à terra
E aos meus olhos e ouvidos atentos
E à minha clara simplicidade de alma...
(Alberto Caeiro)
(…)
Quando tenho a alma suja,
já não vou pelos padres santos do deserto que
castigavam o corpo.
(Conheci um monge que me contou que, no tempo em que castigava o corpo, se sentia todo sujo e não sabia da alma.
Que tomava um banho e até pensava que a água era a alma a morar-lhe nos olhos.)
Às vezes a alma vai suja
como sangue violentado em linho que já foi limpo.
(O monge falou-me do Cântico dos Cânticos, mas dizia sempre “sabes, deve ter sido lindo, mas foi há muito tempo. Gosto de ler, mas basta-me a água que me lava”.)
Já experimentei:
- sentar-me a comer chocolates e a metafísica gargalhou…
- ficar no banco do jardim; as aves nem me viram…
- etc.
(Recordo-me de que o monge dizia sempre o que devia e não usava etc. Não precisava: um minutinho dele a falar era do tamanho da música das estrelas.)
Vou fazer assim:
amanhã, o Sol nasce como sempre fez
vou sentar-me a olhá-lo
atrás dele vêm os pássaros.
(Aprendi isto por mim.)
E ainda vou fazer:
deixar-me voar, voar e ir com eles:
eles viram quem me falta e novas me hão-de dar.
E a alma vai ficar limpa lençol de linho.
1
As manhãs andam coalhadas.
O códão é navalha a abrir a terra, mas a geada estende-se a receber o sol.
2
E também deve haver uma maneira quase matinal de fazer das palavras manto estendido onde se acorde criança a aprender a balbuciar os dias.
3
E também deve haver um banco de pedra no entardecer onde se goste de ver o dia todo, parando os olhos onde apetecer.
O miúdo que vende jornais naquela cidadezinha de província parada pacata patega é a primeira coisa que se vê na cidade, parada pacata patega. Quando chega o comboio da noite, a voz do pequeno ardina (que não tem pai nem mãe) corre pelas ruas e praças espanta a passarada bate nos prédios faz abrir portas e janelas fura a escuridão
saem gritos dos seus olhos a sua cara de menina pede beijos e carícias uma ternura diferente
as pessoas compram-lhe o jornal porque não podem comprar o silêncio do pequeno órfão e toda a cidade é um remorso inexplicável, inexplicável. Irás comigo, irmão, para a próxima jornada. Até ao Outro Lado, seremos dois.
(Luiz Pacheco - Os Namorados)
Lembro-me bem.
O Menino Jesus tinha-me dado três berlindes. Um, muito vermelho; o outro, quase verde. Gostava mais do que tinha tantas cores como o vestido que a minha mãe às vezes levava à missa.
No chão estava uma manta para eu brincar.
Lembro-me de ter brincado como vou contar.
Segurava os berlindes na mão esquerda. Depois, poisava um e dizia o pai está aqui. Com muita atenção, media três palmos e punha outro que era a mãe. Antes, deixava um sopro em cada um. O outro era eu e não tinha sítio certo. Às vezes até ficava seguro nos dedos. Depois de olhar muitas vezes, ia pondo, aos saltinhos, o pai de encosto à mãe.
E, quase a dormir, lembro-me bem, levavam-me para a cama e olhava pelo canto do olho.
Os três berlindes estavam encostadinhos.