19.1.14

Tinha duas hortas para se ocupar.
Nas manhãs orvalhadas, prendia-se às margaridas que lhe lembravam a adolescência. E, aos domingos, era sempre um gosto se podia lembrar as corridas para a escola onde se perdia a olhar para a rapariga que tinha olhos de sol da manhã. A alegria dos domingos tinha uma ponta de amargura.

Era nos dias santos que lhe sobrava tempo para ter lembranças.

Os dias de trabalhar eram-lhe tempo cego; passava-os no outro quintal, trabalhava muito para não dar conta da demora dos domingos; nunca soube se havia neles pingas de orvalho.

Ao domingo saía cedo da cama. Quando as margaridas piscavam luzes de muitas cores, ficava pensativo, mas dizia sempre bom dia a quem passava por se lembrar de quando ia para a escola. As pessoas pensavam que era feliz.

Às vezes apanhava uma flor, tirava-lhe as pétalas, bem-me-quer-mal-me-quer, e levava para casa o sol da manhã. Quase contentes.


Colmeal da Torre, 19 de Janeiro de 2014

4 comentários:

Soledade disse...

Muito bom, Zef, a escrita perfumada (e colorida e saborosa) a contar-nos o sentido do tempo: o que passou e gostamos de lembrar; o que se vive hoje de olhos abertos porque o passado está pacificado,ainda que às vezes venha nele um pingo de amargura; o que está sempre em devir; e este presente sereno de tratar das duas hortas. Que a vida é uma horta e nós somos todos jardineiros, nem todos no entanto com esta delicadeza. Muito bom, mesmo, um poema-prosa lindíssimo! Sabe bem nesta manhã de olhos cegos, aqui deste lado.

zef disse...

Fico contente pela leitura que a Soledade faz; estava rabugento, eu. Já passou. Qualquer dia é domingo :)
Beijos

ana/anita disse...

Voltei à romãzeira, um nosso quintal com amigos. Tenho coisas para ver e ler com o apetite que nos dá quando estamos entre amigos:a escrita doce no imperfeito e o Rilke e o Tolentino...o Zef das "margaridas que piscavam luzes de muitas cores", a Sol que,aqui,é Soledade e tudo parece igual.
Beijinho
ana assunção

zef disse...

Ana/Anita, boa tarde, ainda que me pareça que já não vai ler isto...
Mas respondo por tudo e, também, para dizer como gostei de a Ana falar da "escrita doce no imperfeito". Na verdade, os "pretéritos perfeitos" são de gente morta e já sem sol.
Beijinho (estou a escrever isto com uns barulhinhos de trovoada no céu; há-de trazer pingos de chuva e frescura favónia das hortas).