28.3.07

Dos ritos

Houve intenção quando os joelhos se tocaram e as mãos perceberam o convite. O desenho dos olhos e das bocas de dedos suaves conteve a respiração já acelerada e viu tranquilo passeio, dedos conduzindo dedos, palmas e costas das mãos a conhecerem os caminhos e novos modos lindos de andar.

A mesa estava posta. O pão e o vinho pediam também as mãos, a refeição que os juntou prolonga-lhes o gosto.

Há lume no lar, cobertores macios no chão, chuva miudinha nas vidraças. Janelas grandes. A luz, mesmo a mais pequena, nunca fica do lado de fora.E muito tempo.

Olhares e mãos entenderam-se e houve risos e corridas à chuva cabelos molhados de flores de água e de margaridas à chuva e salivas e humores violetas e suores que a chuva adoça flores nos cabelos escorridos corpos pétalas tapete das bem-aventuranças todas as do céu as da terra as de toda a parte

E, à chamada tranquila do chão macio e do lume obsequioso,

estendidos na manta,
todos os lumes encheram a sala.

A noite foi serena e foi grande.

(Obs.: o meu amigo Aires viu esta coisa e depurou-a como ele sabe)

26.3.07

Não tarda


Quando fica escuro e a lonjura dói, perfumo-me e à casa,
ponho a mesa e faço a cama de lavado.
Quem há-de vir não tarda.

21.3.07

Do regresso ou das boas práticas

Sabe ser contido no riso e no choro. As sombras são breves e os sonhos e os perfumes. Não sejas insolente, terás a bênção dos deuses: beberás o vinho com os amigos, à sombra serena do pinheiro e do choupo companheiro das nuvens, reclinados na relva e na marcela cheirosa.
E, se fores de vida íntegra, justo e firme e, no tempo certo, o labor necessário não faltar, deixa que a água descubra os caminhos: preparaste bem o chão.
Porque tudo está no lugar certo, sê contido no riso e no choro, por perto dos teus amigos.

(À vista de Horácio, Odes, II.3, sobretudo)

15.3.07

Vir do frio. Trazer às pregas da pele as lembranças.
O colo da mãe a alisar a alma.
Aninhar o tempo.

13.3.07

Conversitas

(foto vista na net)

- Ouve: melhor que a tristeza morna é o vento frio ou a febre da doença.
- Sei no que estás a pensar.
- Adivinhaste.
- Mas eu ainda não disse!
- E eu também não posso adivinhar?

10.3.07

Explicação do sorriso


A mãe disse-lhe escreve-me
De lá de longe para onde vais
E ela disse não é longe casar
E a mãe sorria cega de dor
E parecia de deslumbramento

(Daniel Faria,Explicação das árvores e de outros animais - Fundação Manuel Leão)
(foto de Zef)

- D.D.D à Piedade; e à Gab. e M. -

6.3.07

As pedrinhas e os búzios


A esplanada tinha meia dúzia de pessoas, uma em cada mesa.
Com lentidão, um homem e uma mulher levantaram-se. Viram-se e, a sorrir da surpresa, foram-se aproximando. Para se cumprimentarem, os rostos hesitaram e as mãos também não sabiam se deviam ser elas; afinal, já se haviam saudado com os dois beijos; mas já tinha passado tanto tempo…

Houve espaço para verem as mãos um do outro: e ele viu-lhe os búzios e ela viu-lhe as pedrinhas brancas que tinham apanhado no Verão anterior.

Riram-se muito, compararam os cabelos brancos e deram-se mesmo conta de que só tinham mais uma ruguita cada um. É que, no tal Verão, tinham dito um ao outro, com algum pejo mas sem corarem, que já tinham feito os cinquenta anos.

E caminharam de mãos dadas, pedrinhas brancas e búzios misturados.

4.3.07

Os dedos brincam com a luz de março -
não há no corpo lugar para a morte
com o sol adormecido no regaço.
Eugénio de Andrade
(foto de Marco Pedrosa)

2.3.07

Um dia de chuva é tão belo como um dia de sol.
Ambos existem, cada um como é.

Alberto Caeiro