“A rosa é sem porquê” *
O eremita meditava no fim da tarde, as ervas a entrarem-lhe no peito. O tempo era tranquilo e o chão estava grande. E, porque nas palavras de todos os dias era sempre cuidadoso e pequeno, às vezes, antes de adormecer, dizia coisas simples com muitas palavras: o céu está calmo e ajuda as raposas a procurar o sítio do descanso, e eu tenho musgo e uma pedra para repousar o coração. Os pássaros sabem onde dormir. Durmo como os pássaros.
Sabia que isso era modo comprido, envergonhado, e simples, de dizer boa noite.
Ficava menos sozinho.
Fazia-lhe bem jogar com palavras como às crianças fazer desenhos no céu.
Conhecia o cheiro das flores e a maneira como os aromas andavam no bosque de mistura com as folhas. Eram pontas de luz e de cores. Se precisasse de falar, bastava olhar o vento. E os pássaros olhavam. E não era preciso brincar às palavras.
Nem dizer boa noite.
O bosque do eremita era quase divino. Não tinha árvores do bem nem os frutos eram do mal.
E já tinha esquecido a maneira como as coisas haviam aparecido. Mas sabia que tudo era bom. Tudo tinha sido bom.
Algumas dúvidas, guardava-as. Tinha razões.
Muitas vezes, ao dizer “Creio”, ficava a pensar. E baixava a voz.
Também não andava enganado ao dizer muitas palavras como as que substituíam “bom dia”, “boa noite”; sem adornos.
Poucas vezes dizia “o céu está calmo e ajuda as raposas a procurar o sítio do descanso, e eu tenho musgo e uma pedra para repousar o coração. Os pássaros sabem onde dormir. Durmo como os pássaros”. Sabia que isso era maneira de desritualizar um cumprimento. Conhecia ritos, mas queria-os poucos e pequenos.
Como quem reza, era assim que percebia os ritos. Sóbrios, com a solenidade necessária.
E ficava sentado em sítio sozinho. A libertar-se do que não era bom.
Gostava de estar assim, e também sorria ao pensar na morte.
Era divino o bosque do eremita. E simples como as rosas. Despreocupadas.
“A rosa é sem porquê.”
Sorria ao pensar na morte.
Às vezes, era visto a rezar como quem segura na mão uma flor em dia de vendaval.
As palavras não lhe fugiam, as dúvidas é que o atormentavam. Estava vestido de dúvidas. Os irmãos notavam. Olhavam-se e outras dúvidas os afligiam.
Aquele irmão sofria, isso percebiam, já tinham conversado. Do sofrimento do corpo.
Os outros sofrimentos eram sabidos. Alguns também eram de todos. Bem conhecidos e conversados.
Numa manhã marcada para se encontrarem, ao chegarem à porta da cabana do irmão, viram-no sentado na pedra de musgo. Olhava como quem não vê.
Parecia ser arrastado. Como a flor a fugir com os ventos.
Os olhos estavam perdidos, mas o rosto sorria. Não respondeu aos cumprimentos da chegada.
E todos se lembraram de uma conversa que tiveram: Deus é nosso irmão. Está connosco. Não gosta de nos ver a sofrer muito.
Todos deram graças.
* Angelus Silesius
2 comentários:
Assim seja!
Um abraço desde Alicante. Voltei. :-)
Abraços, dos grandes, Lis. OláLis (há que tempos não dizia OláLis!)
Enviar um comentário