31.12.10

Quando partires de regresso a Ítaca,
deves orar por uma viagem longa
(Cavafy; trad. de Jorge de Sena)


Não fui de aventuras longas,
mas amei os caminhos até ao mar.

Os montes olhei-os
a ler os segredos das nuvens.

Do respigo nos campos de Booz
só pedi pão na medida exacta.

Das pessoas vi a graça
e sorri-lhes desprendido.

Merquei as pérolas que desejei,
por saber querer só o que quero.

Os perfumes rodearam-me,
e colhi os que o corpo desejou.

Destinei destino esplêndido
qualquer mar e seu infinito,

como me aceitei hóspede bem recebido
no monte e a montanha que seguia.

Passageiro com destino,
marco os passos sem pressas,

que o fim da viagem é o que se caminha
e não a meta que se passa.

Meditei na água de muitas chuvas,
percebi da sede a causa e o remédio,

e, por serem "muitas as manhãs de Verão",
às vezes sento-me na festa do céu azul.

21.12.10

Não queimei o chão
e li a luz dos líquenes nos muros onde moras.

Levo por mantimento as palavras claras
meu pão essencial.

E, silenciosos,
tristeza bem temperada,
não estaremos em casa vazia.

17.12.10

poema mínimo

palavras para um poema…
inscritas antes de nascer
chamam: sineta de orada
caminham: regresso à festa
ao orvalho criador

ovelhas:
regresso aos bardos
ao tempo imperceptível
inscrito antes de nascermos
e subindo já a morte

28.11.10

uma luzinha em cada palavra, desnudá-la,
cada ponto de luz sôfrego do invisível,
corpo irrequieto poema em gestação

e habitar-te
ou cair devagarinho à tua porta

22.11.10

É ambíguo o silêncio das casas.

Queria ouvir a água materna,
mar limpo e paciente.

O silêncio devia ser como o sono,
olhos abertos ao essencial.

E as palavras, varanda de fim do dia
à escuta.

E adormecer.

18.11.10

Estou sentado a preparar a alegria,
espiga adormecida;

quem chegar não tenha pressa,
ainda ardem os olhos;

quero-os a brilhar pelo lume novo,
incenso anunciado.

10.11.10

"Desamparinho" é palavra que, no "Milagrário" de Agualusa, é a da
"hora feliz, ao final da tarde, quando o dia cede lugar à noite, o calor esmorece, e os velhos se sentam nos passeios, fruindo o fresco e as cigarras, e vendo as moças passarem sacudindo as ancas."

Desamparinho fica bem à gente.
É que a manhãsolinho há-de vir de cara macia mas luz mortiça por causa da noite triste.
Até temos vontade de guardar a luz tristelinda, desamparinho que nos demora o entardecer.

Desamparinho é palavra mimosa. Luz manselinha.

6.11.10

A quem podes pedir
pede que os teus filhos e os filhos dos teus filhos tenham viagens longas,
meditem na água de muitas cisternas
e saibam perceber da sede a causa e o remédio

que conheçam a sombra e a luz de todo o fogo.

3.11.10

Vai olhando a penumbra
o pássaro da varanda
compositor de silêncios.

Vindo a manhã
maestrina da luz
voa ao arco-íris

e os velhos,
que têm a última palavra,
sorriem nas janelas.

29.10.10


Amanhã
vou esquecer os diospiros do outono
olhares afeiçoados
(refeições no terraço)
pássaros azuis
o som limpo das vogais;

talvez faça um poema sério
palavras mesuradas
(sintético eficaz)
de pensamentos profundos
e sons exactos;

e vou estar louco
ou morto.

10.10.10

Tenho por destino a luz das algas
e corro pelas montanhas
à vista das marés cheias

guardei o lume dos teus vestidos
em sítio abrigado dos ventos.

18.9.10

As palavras levam a vertigem das falésias, as carícias do mar
e o mosto engenhoso em que levedaram.

Lê-as com a atenção do marinheiro,
também no silêncio do provador de vinho.

As palavras também são desenhos dos meninos no bafo das janelas.
E as janelas são mar de vidro para as crianças sonharem.

11.9.10


Sento-me à porta do campo
e meço o tamanho do silêncio

25.8.10

POUR QU'UNE FORÊT...

Pour qu'une forêt soit superbe
Il lui faut l'âge et l'infinit.
Ne mourez pas trop vite, amis
Du casse-croûte sous la grêle.
Sapins qui couchez dans nos lits,
Éternisez nos pas sur l'herbe.

(René Char)

20.8.10


Colhe uma flor
se o sol vai duro
e não tenhas pressa.

Vêm aí os pássaros dos jardins.

16.8.10

As amoras são negras
e choram orvalho.

Sim, filho, são lindas,
as framboesas também.

Os teus olhos são negros
e as framboesas não choram.

Filho,
tenho olhos de amora.

E muito brilhantes,
gotinhas de orvalho.

Filho,
os meus olhos são amoras.

Os nossos olhos são amoras
e as manhãs são lindas.

24.7.10

Despegam-se das raízes as palavras,
escamas cansadas;
não nos levem a alma,
ao menos, Senhor.

Como a farinha se livra do cisco.

19.7.10

hoje não quero grande coisa
basta ficarmos assim

ontem as estrelas eram um deus dará
e foram grandes as coisas que quisemos

hoje o céu tem estrelas veladas a dizerem
só nos damos como desejamos

e amanhã vou dizer
hoje não quero grande coisa

e o céu vai ouvir
basta ficarmos assim

6.7.10

uma folhinha seca
na borda da água
o menino a olhar
olhos negros e grandes

céu de chumbo
mergulhado no tanque

silêncio pardo
na mesa já posta,
talheres ainda novos,
e um bilhete postal antigo.

2.7.10

CANCIÓN


Álamo Blanco


Arriba canta el pájaro,
y abajo canta el agua.
- Arriba y abajo,
se me abre el alma - .

Mece a la estrela el pájaro,
a la flor mace el agua.
- Arriba y abajo,
me tiembla el alma -.

-Juan Ramón Jimenez; Antología poética; Edición de Javier Blasco
Catedra - Letras Hispánicas .
Os velhos vão pelos campos a juntar recordações.

Dizê-las é a herança poema,
lume novo dos filhos.

29.6.10

Não digas as palavras todas.
Lembrei-me de to pedir há bocado, ao catar o jardim.
Vi um bicho de conta; toquei-o.
Encolheu-se e entendi-lhe o medo.

Fiquei a pensar nas conversas dos amantes.
O essencial é percebido quando cada um se recolhe ao seu leito:
eu amo-te.

E os corações batem muito depressa.

25.6.10

Estuda como os telhados se inclinam
e percebe a força da chuva.

Escolhe depois onde morar.

15.6.10

Às vezes, as palavras caem-nos,
feridas expostas.
É preciso trabalhá-las à navalha
até vermos sangue,
limpo do pus.

8.6.10


Sente-se na minha frente.
Isso, um bocadinho de lado,
é melhor assim.
O perfil da boca fala melhor que os olhos.

Os olhos são muito sabidos,
olham e sabem-se olhados,
conhecem a arte de fingir.

A fissura dos lábios é de nervo rijo,
ri ou chora quando precisa,
não quando deve.

Olhos nos olhos é uma treta;
conhecem a conveniência do momento;
assaltam-se ou afastam-se
não se vê se por gosto se a contra-gosto.

É preciso saber muito para entender os olhos nos olhos.
Sou ignorante. Também tenho medo.

Assim, já está bem.
Estou a ver.

Vou guardar a imagem na pele.

Agora
sento-me eu,
também de lado.

Pode olhar.
Veja como é firme
a fissura dos lábios.

6.6.10

Fui ao vale de algum do meu crescimento e cruzei-me com um monge. Levava o cântaro do leite para os irmãos mais idosos.

Trazia os olhos no chão, mas tratei-o pelo nome.

Que festa de reencontro e conversa comprida!
Conversámos como há muitos anos, pouco mais que adolescentes.

O monge recolheu-se.
Levava uma ponta da alegria difícil de ler.

Ainda lhe conheço algumas letras.

4.6.10


No apagues, por Dios, la luz

Que arde dentro de mí mismo...

(Juan Ramón Jiménez)

O sol só cumpre o dever
de vir sempre a seguir à noite
não é da manhã luz materna...

não tem ouvidos nem olhar
velaste e a luz não sabe
descansas o sol não deu conta.

A luz arde dentro de ti.

A alba perfuma as flores
por ser de ambas a condição
como o branco é da geada...

sorrirem-te as madrugadas
é da quentura do teu sangue...
não vás por luzes andadeiras.

31.5.10

O vento
a modelar a seara

o cheiro do vinho novo
na hora do descanso

Corpo bonito.

25.5.10

As Poupanças

Na realidade enganaste-me,
depositei o meu amor em ti
como numa caixa forte,
e que aí estaria sempre, dizias,
até que viesse buscá-lo.

Faliste, involuntariamente, é certo
(amor e morte são tão involuntários!)
não há ninguém no teu escritório e levaste
todas as minhas poupanças deixando-me as tuas.
Não sei que fazer com elas, é o que é,
nem com toda essa fé que tinhas no mundo.

(Jordi Virallonga; Quanto sei de mim - Tradução de Carlos Veiga Ferreira; teorema)

20.5.10

Não receies a aspereza das espigas.
O imigrante
não o afligem as línguas bárbaras
dos seareiros
e dança a música dos ventos.

Como o mar bravo:
a praia fica bêbeda
de espuma.

E o tempo:
a tarde vai linda,
limpou-a a trovoada.

As espigas são flores escondidas
mulheres grávidas de pão.

17.5.10

Levas a leviandade de quem caminha em chão maduro.
Atiro-te sementes de pássaro, ó coisa distraída.

24.4.10

Abril é outro tempo,
luz aberta
lembranças de repouso,
parece.

Nalgumas tardes, nesgas de sol,
dá vontade de chamar
mãe, anda cá, vem sossego desta luz,
igualinha às tuas mãos quando eu chegava da escola.

O tempo é o que é
e a luz não se entrega,
é assim.

Mãe, deixa lá,
só queria um poema como o das tuas mãos.

9.4.10


Ao chegares, não digas
cheguei.

Entra devagarinho.

23.3.10

Cantiga da Ama

Quando se ouvem as vozes das crianças no largo
E se ouvem os risos nos montes,
O meu coração sossega no peito
E tudo o resto se cala.

"Vá, vamos pra casa, meninos, o sol já se foi embora
E vem aí o relento,
Vamos, vamos, acabou a brincadeira, toca a recolher
Até o dia nascer."

"Não, só mais um bocadinho, ainda não está escuro
E não podemos ir dormir,
Olha, os passarinhos ainda voam no céu
E as ovelhas estão todas no monte."

"Vá, vão, vão, mas só até ficar escuro
E depois vão pra casa dormir."
As crianças saltaram & gritaram & riram
E os montes todos ecoaram.

-William Blake; Cantigas da Inocência e da Experiência - Tradução de Manuel Portela; Antígona

20.3.10


À Guiomar

(para quando souber ler-me nos olhos)

Subo o monte nuvem pesada.
As borboletas descem,
leves, flores ligeiras:
sabem os sítios de crescer,
auroras aladas.

Guarda-nos flores.

(20 de Março, dia de flores, 2010)

9.3.10


O homem arrastou-se pelo negrume impenetrável.
A princípio tinha solo pedregoso debaixo dos pés e a caminhada não era muito difícil, mas passado pouco a neve endureceu; as condições pioraram.

Teve de confiar na sua linha de pensamento:
A raposa pode ser infantilmente tímida em relação à intempérie. Vai escavar um buraco na neve ou enfiar-se profundamente em fendas, muito abaixo da marca de gelo, e ficar aí até que tenha passado o mau tempo.

Agora, o homem tinha uma hipótese de encurtar o intervalo entre ele e a pequena raposa.


Sjón - A Raposa Azul; trad. de Maria João Freire de Andrade - cavalo de ferro

21.2.10

El árbol tiene memoria,
que le anda lejos y cerca.
- Qué recuerda?

Recuerda cómo a sus aires
se acordaban voces frescas.

- Qué recuerda?

Recuerda que las perdió,
cuando era triste perderlas.

Rafael Alberti - Pleamar
(Antología Poética - Colección Austral)

30.1.10

A imaginação não é a capacidade de inventar imagens, mas a de harmonizá-las com o nada inicial do poema.

Todo o discurso sem zonas de escuridão é convencional e precisa de inspiração. Mas escuridão, neste caso, não quer dizer falta de lucidez.

A poesia está feita do que se diz, mas também do que se cala. Por isso, quem diz tudo não é poeta. Quem tudo cala, também não, mas acaba por ser menos maçador.

A última gota, a que a esponja não expulsa quando a esprememos, é a poesia. Mas essa mesma gota não é nada sem a pressão da mão.

(Angel Crespo - A Realidade Interna - Poemas escolhidos (1949-1990). Selecção e Tradução de José Bento - teorema)

25.1.10

Foi o primeiro a levantar-se, abriu as portadas e viu o dia. O sol andava pelos lameiros e as gotas do orvalho piscavam às cores. Isso estava à vista, mas não era o que levava no peito.

Abriu o quarto de dormir, disse a quem dormia: é de nós, ou da casa; o tempo certo nunca vem quando é preciso.

Quem era de se levantar levantou-se, viu claramente visto o peito do sol e as cores das coisas.
Disse: é verdade, os tempos andam incertos.

Olharam-se.
Viam como ia o sol. Mas
também se sabiam de coração.

23.1.10


O céu deve existir.

Às vezes, a gente sente-o, sobretudo quando podemos ver as coisas mais ou menos assim, mas isto é um exemplo.

O tempo anda frio e húmido e a casa tem estado vazia, quero dizer, não é bem vazia; não está na medida dela e isso morde o peito.

É a maneira de dizermos fazeis-nos falta, vinde cá a casa, onde há os sítios que nos completam; e sabemos que onde morais há bocadinhos iguais: também lá estamos bem.

É também a maneira de podermos ouvir temos casa de sobra e não está na medida do peito.

E a gente não fala. O peito fica aberto e escuta. Há um ventinho que nos passa, e o que é preciso.

Quando estamos atentos, são as coisas pequenas que vemos. A maior parte das vezes, só olhamos os mundos abertos, que só precisam dos olhos e são as coisas grandes que incham as casas.
As coisas pequenas é que as enchem.

As casas só se enchem do que quase ninguém vê
é da atenção que elas se completam

e o céu é assim,
sempre à espera

4.1.10


Amor, hoje teu nome
a meus lábios escapou
como ao pé o último degrau...

Espalhou-se a água da vida
e toda a longa escada
é para recomeçar.

Desbaratei-te, amor, com palavras.

Escuro mel que cheiras
nos diáfanos vasos
sob mil e seiscentos anos de lava -

Hei-de reconhecer-te pelo imortal
silêncio.

(Cristina Campo; O Passo do Adeus - Trad de José Tolentino Mendonça; Assírio & Alvim)

Nota pequena: ando sempre com Cristina Campo como Jacob com o Anjo: tarda-me a bênção, quero dizer, fica-me sempre qualquer coisa por entender dela...

2.1.10

levezas


(Jackson Pollock)

desarrumas-me
que de trejeitos para dizer
desarrumas-me
não procurei a palavra
atiraste-ma
ó desarrumadora
e não demoro a desarrumar-te

31.12.09

Os olhos têm sono:
abriram-se, na manhã lúcida, e viram muito.
Moeram trigo e algum pão foi bonito e gostoso.

Os olhos vão cansados, na espera da noite,
que há-de chegar com elegância,
cheirosa,
levezinha, pão no outono.

23.12.09

Natal

1

Às vezes, ponho palavras num caderno.
São obra desajeitada, mas deram voltas como em oficina de ourives,
como as mãos frias antes de afagar as bochechas dos filhos:
arte de unir as palmas, entrelaçar os dedos,
as palavras e as mãos se aquecerem até a quentura ficar igual.

Junto as palavras como preparo as mãos.
A obra não será perfeita, mas espera merecer algum olhar,
como nos fazem as crianças.

2

Às vezes, as palavras são lisas, latão frio.

3

Mas, quando olhas para mim, vou ao tecto do mundo.
É da tua cara quente.

10.12.09

A ÚNICA ROSA


TÔDAS AS ROSAS são a mesma rosa,
Amor, a única rosa.
E tudo está contido nela,
Breve imagem do mundo,
Amor! a única rosa.

(Juan Ramón Jimenez - Trad. de Manuel Bandeira, Poesia e Prosa,
vol. I; Editôra José Aguilar, Ltda. Rio de Janeiro, D.F., 1958)

7.12.09


Mamá
Bórdame en tu almohada.
(Lorca: poema Canción Tonta))


Quando nasci,
pai?

No nascer do sol,
filho.

O céu tinha as estrelas
como hoje?
Parece a minha colcha bordada.

Pareces o menino da Canção Tonta,
filho.
As estrelas são os teus olhos.

A mãe bordou-os,
foi?
Porque me estás a olhar,
pai?

Por causa da mãe,
filho,
fez os teus olhos.

Agora és tu o tonto,
pai.
Às tardinhas ficas assim.

Por causa das estrelas,
filho.
Vem aí a noite.

E a mãe vai bordar
estrelas?

27.11.09

1
Releio o que escrevi, querendo alterar
os dias
- não precisava: a solução não está aí.

Escrevo o que já li, como a transplantar
o tempo
- inútil: não fala o que morreu.

2
Espera. As palavras são líquenes
- desocultam: fica contente
- velam: percebem o silêncio e são afáveis.

Merece-as

20.11.09


As palavras vadias
flores gaiatas bonitas
cores saltarelas ao vento
músicas cabelo a voar

os sentidos que trazem
mais os que quisermos dar

benditas sejam.


15.11.09

Sabes onde dói
conheço-te
e a água orvalho
que trazes

10.11.09

Dois impropérios seguidos de grão de trigo

(foto de Pedro Pedro)

1

Às vezes é tudo claro como o voo das aves
sabem do vento que não as desarruma.

O sítio certo das coisas devia ser o das aves
não lavram nem semeiam
conhecem as sementes.

2

Às vezes sabemos onde nos fomos deixando
voltamos esquecemo-nos do vento
espalhou-nos por toda a parte
fragmentos de pouco jeito.

**

Poucas vezes as coisas são claras
talvez tenham alguma luz
os bocadinhos do tempo bom
abrigados na arca do peito.

9.11.09

Cartas da tarde


O quintal tem um vidoeiro.
À aragem mais pequena cumprimenta toda a gente.
Com vento zangado faz abanos furiosos e é preciso percebê-lo.
No tempo parado não diz nada a ninguém.

Hoje não gosto do vidoeiro.

27.10.09

Cântico


1.

Aurora

dedos de rosa vem ligeira pelos montes

e traz lençóis de linho limpo.



2.

Luz esplêndida

a dos olhos da espera



3.

Vinha pelos cedros e pelo orvalho na cidreira, erva-doce e hortelã-pimenta e lembrava-se de quem cheirava àquela resina e a boca era de hortelã fresca e de frutos deliciosos e de música dos cânticos mais bonitos

corça morena a arfar na montanha alta por ventos propícios

e adormecia ao relento até chegar a aurora do linho macio.



4.

Um passinho mais

e morro no teu corpo

montanha suave

toquinha de raposa.

25.10.09



À noite o silêncio dói mais
tanto que a cabeça estala

cavalos pisam os ouvidos
barulhos a roubar a alma

ouve.

20.10.09

Junto dos Rios da Babilónia [Sl 136 (137)]

Nas margens dos rios imaginando pontes
Quando já só no nosso pensamento deslizavam
Debaixo da sombra das liras
Ali nos pediam - em solo alheio -
Que cantássemos canções da nossa terra.
Como poderíamos cantar a nossa infância
Tão longe, num país estranho?

Os salgueiros têm folha persistente

Sob a sombra persistente a mudez
Junto dos rios da Babilónia
Foi a única das nossas alegrias

(Daniel Faria - Homens que são como Lugares mal Situados - Fundação Manuel Leão, Porto, 1998)

15.10.09

Criação

Sôbolos rios que vão

Quando não havia quase nada na terra e muito nevoeiro no céu, Deus viu que tinha tristeza nos olhos e
disse:
haja mais luz,
e as flores nasceram e as cores .

Que lindo,
disse Deus,
e recolheu-se nos aposentos.

No dia seguinte, abertas as janelas, Deus pensou na maneira como as flores deviam espalhar as sementes,
e disse:
cada flor tenha uma pétala borboleta,
e os jardins encheram-se de crianças.

Vou ficar aqui,
disse Deus,
e pôs escritos nos vidros.

As crianças não deram conta de nada.
Andaram aos saltos em terra mole e loira como papinhas de aveia, nuns sítios,
e mais morena nos de alguma sombra.

Tinham salpicos nas pernas e sardas nas bochechas.
Os cabelos iam arranjando as cores da luz.

Mas os pés de Deus abriam crateras e iam arrastados, a sujar as cores do chão.

Parou para descansar, pensou e disse:
que a água vá por caminhos seus
e deixe bocados de terra firme.

Apareceram rios grandes, ribeiros e arroios,
margens seguras por salgueiros, meruges e outras ervas.

E Deus meditou muito.

Passava uma aragem fina, de som de harpas e liras.
Deus pensou muito, nas árvores e naquela espécie de música.
Ficou triste outra vez,
e tirou os escritos das vidraças.

10.10.09

Parábola da casa

1
A espaços, fico zangado.
Gato sem casa,
bufo a quem passa.
Se alguém olha,
deixo que passe
e penso baixinho:
vai ali a minha casa.
Mas este hábito,
o de dizer não.

2
Há três crianças a brincar e um gato enrolado, um olho aberto,
outro fechado.
Os meninos não se olham, mas brincam como é dado.
Ao gato sabe bem como se estivesse em casa.

26.8.09

A Montanha Mágica

Na idade de entender a Condessa de Ségur e o Cavaleiro Andante, pus-me a ler a Montanha Mágica. Do que li lembro-me…era nas tardes de quinta-feira e nalguns domingos, junto duma presa de águas muito frias que lia.

Havia um Castorp e a demora de sete anos numa montanha, como os de Laban…Só disto, do livro.


Do resto – tempo, pardalada, passeios nas nuvens, as angústias do coração a crescer sem perceber, está cá tudo, quase tudo, para além da vaidade do dizer adolescente ando a ler A Montanha Mágica de Thomas Mann. Dito assim, com estas palavras…


É por isso que hoje vou começar a ler A Montanha. O coração já está acomodado…


Vou demorar mais que sete dias e mesmo que sete semanas.

“Sete anos é que decerto – Deus nos valha! – não serão precisos!” – Nota-se que já comecei…


Quando regressar aqui, as pessoas amigas que visitam a Romãzeira ficam a saber que acabei de ler A Montanha Mágica de Thomas Mann!


Assim vai ser e vai ser bom!



22.8.09

Os pequenos objectos

Os pequenos pormenores da casa:
o fio abandonado no tapete,
o fósforo no chão,
a cinza,
que no ladrilho põe sua frágil contextura,
a unha recortada do menino
ao lado do sapato,
dão prazer aos olhos que, alheados,
coleccionam imagens de objectos inúteis.

Ama-se mais a mãe por esse fio,
e recorda-se o pai
pelo fósforo e a cinza
e o menino pela unha e o sapato.

Os pequenos objectos que se varrem,
que já ninguém apanha,
sumamente importantes, recordam-nos
os pequenos desgostos quotidianos
e os pobres prazeres, tão pequenos.

(Ángel Crespo - Em: A Realidade Inteira, Poemas escolhidos (1949-1990)
- Selecção e tradução de José Bento - Teorema)

15.8.09

Conversitas

- Tens riso de glicínia logo de manhã. Glicínia e orvalho.
- És um vidoeiro.
- Vamos fazer de conta: trazias as flores para os meus ramos.
- E éramos a mesma coisa.
- Criança e água,
éramos do mesmo cheiro.