31.12.09
23.12.09
Natal
São obra desajeitada, mas deram voltas como em oficina de ourives,
como as mãos frias antes de afagar as bochechas dos filhos:
arte de unir as palmas, entrelaçar os dedos,
as palavras e as mãos se aquecerem até a quentura ficar igual.
Junto as palavras como preparo as mãos.
A obra não será perfeita, mas espera merecer algum olhar,
como nos fazem as crianças.
É da tua cara quente.
10.12.09
A ÚNICA ROSA
7.12.09
Mamá
Bórdame en tu almohada.
(Lorca: poema Canción Tonta))
Quando nasci,
pai?
No nascer do sol,
filho.
O céu tinha as estrelas
como hoje?
Parece a minha colcha bordada.
Pareces o menino da Canção Tonta,
filho.
As estrelas são os teus olhos.
A mãe bordou-os,
foi?
Porque me estás a olhar,
pai?
Por causa da mãe,
filho,
fez os teus olhos.
Agora és tu o tonto,
pai.
Às tardinhas ficas assim.
Por causa das estrelas,
filho.
Vem aí a noite.
E a mãe vai bordar
estrelas?
27.11.09
20.11.09
10.11.09
Dois impropérios seguidos de grão de trigo
Às vezes é tudo claro como o voo das aves
sabem do vento que não as desarruma.
O sítio certo das coisas devia ser o das aves
não lavram nem semeiam
conhecem as sementes.
voltamos esquecemo-nos do vento
espalhou-nos por toda a parte
fragmentos de pouco jeito.
talvez tenham alguma luz
os bocadinhos do tempo bom
abrigados na arca do peito.
9.11.09
Cartas da tarde
27.10.09
Cântico

1.
Aurora
dedos de rosa vem ligeira pelos montes
e traz lençóis de linho limpo.
Luz esplêndida
a dos olhos da espera
Vinha pelos cedros e pelo orvalho na cidreira, erva-doce e hortelã-pimenta e lembrava-se de quem cheirava àquela resina e a boca era de hortelã fresca e de frutos deliciosos e de música dos cânticos mais bonitos
corça morena a arfar na montanha alta por ventos propícios
e adormecia ao relento até chegar a aurora do linho macio.
Um passinho mais
e morro no teu corpo
montanha suave
toquinha de raposa.
25.10.09
20.10.09
Junto dos Rios da Babilónia [Sl 136 (137)]
Quando já só no nosso pensamento deslizavam
Debaixo da sombra das liras
Ali nos pediam - em solo alheio -
Que cantássemos canções da nossa terra.
Como poderíamos cantar a nossa infância
Tão longe, num país estranho?
Os salgueiros têm folha persistente
Sob a sombra persistente a mudez
Junto dos rios da Babilónia
Foi a única das nossas alegrias
(Daniel Faria - Homens que são como Lugares mal Situados - Fundação Manuel Leão, Porto, 1998)
15.10.09
Criação

Quando não havia quase nada na terra e muito nevoeiro no céu, Deus viu que tinha tristeza nos olhos e
disse:
haja mais luz,
e as flores nasceram e as cores .
Que lindo,
disse Deus,
e recolheu-se nos aposentos.
No dia seguinte, abertas as janelas, Deus pensou na maneira como as flores deviam espalhar as sementes,
e disse:
cada flor tenha uma pétala borboleta,
e os jardins encheram-se de crianças.
Vou ficar aqui,
disse Deus,
e pôs escritos nos vidros.
As crianças não deram conta de nada.
Andaram aos saltos em terra mole e loira como papinhas de aveia, nuns sítios,
e mais morena nos de alguma sombra.
Tinham salpicos nas pernas e sardas nas bochechas.
Os cabelos iam arranjando as cores da luz.
Mas os pés de Deus abriam crateras e iam arrastados, a sujar as cores do chão.
Parou para descansar, pensou e disse:
que a água vá por caminhos seus
e deixe bocados de terra firme.
Apareceram rios grandes, ribeiros e arroios,
margens seguras por salgueiros, meruges e outras ervas.
E Deus meditou muito.
Passava uma aragem fina, de som de harpas e liras.
Deus pensou muito, nas árvores e naquela espécie de música.
Ficou triste outra vez,
e tirou os escritos das vidraças.
10.10.09
Parábola da casa
A espaços, fico zangado.
Gato sem casa,
bufo a quem passa.
Se alguém olha,
deixo que passe
e penso baixinho:
vai ali a minha casa.
Mas este hábito,
o de dizer não.
2
Há três crianças a brincar e um gato enrolado, um olho aberto,
outro fechado.
Os meninos não se olham, mas brincam como é dado.
Ao gato sabe bem como se estivesse em casa.
26.8.09
A Montanha Mágica

Na idade de entender a Condessa de Ségur e o Cavaleiro Andante, pus-me a ler a Montanha Mágica. Do que li lembro-me…era nas tardes de quinta-feira e nalguns domingos, junto duma presa de águas muito frias que lia.
Havia um Castorp e a demora de sete anos numa montanha, como os de Laban…Só disto, do livro.
Do resto – tempo, pardalada, passeios nas nuvens, as angústias do coração a crescer sem perceber, está cá tudo, quase tudo, para além da vaidade do dizer adolescente ando a ler A Montanha Mágica de Thomas Mann. Dito assim, com estas palavras…
É por isso que hoje vou começar a ler A Montanha. O coração já está acomodado…
Vou demorar mais que sete dias e mesmo que sete semanas.
“Sete anos é que decerto – Deus nos valha! – não serão precisos!” – Nota-se que já comecei…
Quando regressar aqui, as pessoas amigas que visitam a Romãzeira ficam a saber que acabei de ler A Montanha Mágica de Thomas Mann!
Assim vai ser e vai ser bom!
22.8.09
Os pequenos objectos
o fio abandonado no tapete,
o fósforo no chão,
a cinza,
que no ladrilho põe sua frágil contextura,
a unha recortada do menino
ao lado do sapato,
dão prazer aos olhos que, alheados,
coleccionam imagens de objectos inúteis.
Ama-se mais a mãe por esse fio,
e recorda-se o pai
pelo fósforo e a cinza
e o menino pela unha e o sapato.
Os pequenos objectos que se varrem,
que já ninguém apanha,
sumamente importantes, recordam-nos
os pequenos desgostos quotidianos
e os pobres prazeres, tão pequenos.
(Ángel Crespo - Em: A Realidade Inteira, Poemas escolhidos (1949-1990)
- Selecção e tradução de José Bento - Teorema)
15.8.09
Conversitas
- És um vidoeiro.
- Vamos fazer de conta: trazias as flores para os meus ramos.
- E éramos a mesma coisa.
- Criança e água,
éramos do mesmo cheiro.
31.7.09
Parábola da espera
O velho vai todos os dias à meia encosta da colina e deixa que o coração repouse.
Sabe que precisa da força para mais alguns passos:
quem espera há-de chegar com o esforço de quem sobe
ou a ligeireza de quem desce,
e ele precisa da distância para olhar
e poder dizer
olha como sabe bem sabermos caminhar um para o outro.
2.
A espera é um menino a respirar.
20.7.09
Parábola do Pensador
espelhos dos teus olhos,
no escuro, voltei a
vê-lo: vi ali
o grande e anguloso
pássaro que da tua alegria se sustenta,
tal como nas montanhas se sustenta
da mágoa o pensador.
(Robert Bringhurst - A Beleza das Armas - Tradução de Júlio Henriques; Ed. bilingue, Antígona, Lisboa, 1994)
16.7.09

Não penses a casa arrumada.
Lembra-te de como ficou quando saíste.
Lençóis engelhados
uma peça de roupa aqui
outra ali.
Sabes quais são.
O sítio, olha,
não te esforces,
foram sempre muitos,
mas
a mesa está posta.
A toalha branca,
talheres do costume
e nos sítios que sabes.
A árvore está ali
e guarda o nome que lhe demos,
o último.
Pensa nisto.
Arrumamos desarrumamos a casa
nascemos outra vez
e acrescentamos um bocadinho o verão.
13.7.09

Gostei disto. Da devoção e dos seus dizeres.
O aloquete não me pareceu ser coisa genuína e de quem tem fé.
As flores são de plástico, mas paciência. Tanta como a que pedem os caminhos da Serra entre Videmonte e a Senhora de Assedasse.
Hei-de voltar e levo-Lhe o cacho de uvas mais doces. Já estão a crescer no quintal e são para aquela Senhora: ninguém lhes vai tocar. Só Ela.
1.7.09
Bilhete aos filhos com as palavras de adormecer

A pétala azul soltou-se no vento
voou foi voando aos círculos aos círculos
a andorinha bicou-a
sei um ninho
e é azul
Há palavras também azuis
doidas como os sonhos.
Sorriem-nos à noite
e dormem connosco
sonhos sábios
Ao primeiro sol,
vão indo, vão indo,
olhando de lado
a dizer o caminho do mar.
Os olhos do mar são azuis.
Como eram os vossos sonhos.
28.6.09
27.6.09
15.6.09
8.6.09
desesperos, aquele que mais me aflige.
É como a erva calcada dos campos:
uma ameaça contra a respiração.
(Daniel Faria - O Livro do Joaquim - Edição e Prefácio de Francisco Saraiva Pinto - quasi)
Nota: Daniel Faria morreu no dia 9 de Junho de 1999
2.6.09
22.5.09
Em lembrança
Voltarei à penumbra fresca da igreja
Ancestral, silenciosíssima e vazia,
Aonde está pousado o teu altar:
Doce mãe Maria...
E ajoelhar-me-ei,
E fecharei os olhos sem pensar...
Que a minha oração nada mais seja!
Basta descansar.
Apetece-me pensar que um dia será assim.
(João Bénard da Costa; Nós, os vencidos do catolicismo – Edições Tenacitas – É assim que se acaba o livro - O poema tem o título A Nossa Senhora e é do livro 35 Poemas)
9.5.09
2.5.09
26.4.09
Bilhete
Grande se vê o mundo do alto do monte.
Não quero o tamanho do que vejo
quero-o da minha medida.
Vou para casa.
Dormir.
Quando chegares, a porta está aberta.
Podes entrar.
12.4.09
a água traz desenhos que desenhámos,
pele lisa ainda
- julgava-os delidos
O mar guardou-os
está a pôr as pétalas no pé donde,
bem-me-quer-mal-me-quer,
em anos verdes,
as fomos soprando em desenhos de abandono
Se fosse de pôr flores no cabelo,
amantes,
íamos recolhê-las
bem me quer,
- e éramos luz,
lágrimas orvalho brilho nos olhos
- e tu no agasalho das minhas pálpebras
10.4.09
Pietà
Assim, Jesus, venho encontrar estes teus pés,
que outrora foram pés de adolescente,
quando eu tos descalçava e os lavava a medo;
como se emaranhavam em meu cabelo
como corça branca em moita de espinheiros.
Assim eu vejo teus membros nunca-amados
pela primeira vez nesta noite de amor.
Nós ambos nunca nos deitámos juntos,
e agora é só admirar e velar.
Mas como as tuas mãos estão laceradas - :
E não é, Amado, de eu tas ter mordido.
Teu coração está aberto, e pode-se entrar nele:
e devia ter sido só minha a entrada.
Agora estás cansado, e a tua boca cansada
não deseja a minha boca dorida - .
Jesus, Jesus, quando foi a nossa hora?
Que singularmente nos perdemos ambos!
(Rainer Maria Rilke: Poemas - As Elegias de Duíno - Sonetos a Orfeu. Selecção e tradução de Paulo Quintela -ASA)
9.4.09
(...)
A amizade é o milagre pelo qual um ser humano aceita olhar à distância, e sem se aproximar, o próprio ser que lhe é necessário como um alimento. É a força de espírito que Eva não teve; e, contudo, ela não tinha necessidade do fruto. Se ela tivesse tido fome no momento em que olhava o fruto, e se, apesar disso, tivesse permanecido indefinidamente a olhá-lo, sem dar um passo na sua direcção, teria realizado um milagre análogo ao da perfeita amizade.
(Simone Weil - Espera de Deus ; trad. de Manuel Maria Barreiros - Assírio & Alvim)
1.4.09
Conversitas
15.3.09

Saber que não se escreve para o outro, saber que isto que vou escrever não me fará nunca ser amado por quem amo, saber que a escrita nada compensa, nada sublima, que está precisamente aí onde tu não estás - é o começo da escrita.
(Roland Barthes - Fragmentos de um Discurso Amoroso - trad. de Isabel Pascoal ; edições 70)
8.3.09
Olha.
Hoje de manhã vi um campo muito verde.
Tinha meruges juntinhas, assim ao meu lado esquerdo,
e as margaridas já erguiam o sol.
Escuta.
Vi um verdelhão. Tinha bocados do campo e do sol das flores.
E um melro. Vi-o por causa das cores.
E o sol estava no campo. Por causa da música.
Pensei assim:
o sol cresce dentro das coisas
para que a morte venha viçosa
iremos ao mesmo sítio
pelas cores e pela música
levamos a luz nossa sombra
e fazemos assobios de melro maroto
somos meninos
ainda não vale morrer.
28.2.09
O rio que corre à frente da minha casa é alegre.
A gente da minha rua diz que o rio é alegre
E eu digo com eles "o rio é alegre".
Há quem murmure fórmulas.
Outros cumprem deveres bizarros.
Vencido, o mundo jaz aos seus pés.
Mas a gente da minha rua não vê as coisas assim.
Olha, diz, o rio é alegre,
E eu, é verdade, digo com eles "o rio é alegre".
Quão lento, quão lento é o tempo!
Coisa que não pára de me causar espanto.
Entretanto, o rio corre,
O rio corre, sem perguntas
E sem as grandes ideias da rua.
Nem recordação nem ilusão provocam qualquer mudança no correr do rio.
E, ora, se uma vez ou outra por ventura não correr assim,
Que lhe seja perdoado.
(Arjen Duinker, A canção sublime de um talvez; Selecção e tradução de Arie Pos - teorema)
26.2.09
20.2.09
12.2.09
(…)
Só a beleza não é um meio para outra coisa. Só ela é boa em si mesma, mas sem que nela encontremos qualquer bem. Parece ser ela mesma uma promessa e não um bem. Mas nada oferece senão ela própria, não oferece nunca outra coisa.
(Simone Weil – Espera de Deus- Trad. de Manuel Maria Barreiros. Assírio e Alvim)
6.2.09
(…)
Abre sempre que quer, e fora de estação.
(Paul Celan; trad.: João Barrento)
Morrer em casa com a mesma calma com que partíamos o pão e o púnhamos na mesa.
Os filhos à volta e o cheirinho bom de quando lhes dávamos banho e nos sentávamos à ceia.
Boas lembranças para deixar e irmos adormecendo.
E os dois ou três amigos, que gostam de nós, a dizerem-nos até já,
para que a morte não venha fora de estação.
16.1.09
Preciso saber as que esqueci. E pegá-las como o mágico ao lencinho: dobra, esconde, mostra, e, dos dedos, o pano branco faz-se pássaro, papéis de brilho.
As palavras esquecidas imagino-as em carruagens paradas nos montes e foram as das minhas viagens.
Quero-as e aos desenhos que fizemos.
Vou encontrá-las e seremos pássaros brilhantes a voar para onde vai o vento.
Quero as palavras que esqueci.
Ainda hão-de estar nos seus lugares.
13.1.09
Valor das Palavras
Há palavras que fazem bater mais depressa o coração - todas as palavras - umas mais do que outras, qualquer mais do que todas. Conforme os lugares e as posições das palavras. Segundo o lugar de onde se ouvem - do lado do Sol ou do lado onde não dá o Sol.
Cada palavra é um pedaço do universo. Um pedaço que faz falta ao universo. Todas as palavras juntas formam o Universo.
As palavras querem estar nos seus lugares!
Almada Negreiros - Andaimes e Vésperas
1.1.09
Nas asas duma pneumonia
Ordem do médico:
- boa alimentação e muitos líquidos; corpo descansado em bom aconchego. Vamos ter cuidado, não venha por aqui uma pneumonia!
Foi assim que fiquei , recostado numa cadeira de baloiço calmo, a olhar o lume.
Senti-me bem e com uma dormência d’alma, perto de quem sonha.
E disse a quem me ajudou a envolver-me no capote do tempo muito frio:
- deve ser engraçado ir ao céu nas asas duma pneumonia! Chegar lá e ver São Pedro “anda cá, vais ver gente de que gostas” e eu a dizer “já vejo”e a perguntar por uma Irene, aquela ‘Irene no Céu’:
-‘Licença, meu branco!
E São Pedro bonachão:
- Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.’,
lembrado de Manuel Bandeira, e a querer saber novas dele.
Fui adormecendo, como quem chega ao céu nas asas duma pneumonia, quentinho e sem tosse.