
Os amigos amei
despido de ternura
fatigada;
uns iam, outros vinham,
a nenhum perguntava
porque partia,
porque ficava;
era pouco o que tinha,
pouco o que dava,
mas também só queria
partilhar
a sede de alegria –
por mais amarga.
(Eugénio de Andrade)
Jerónimo Vaía (n. 1620/30; m. 1688)
“…, gosto dos teus olhos e da maneira como andas” .
O papel não lhe chegou aos olhos (…a minha irmã mais velha ainda hoje diz que não foi ela – lá em casa dizia-se que eu ia para padre…) e deve ter sido bom.
Uma vez, olhei-a muito e disse-lhe pareces uma cigana.
Já sabia que não era só pelos olhos: era linda a andar e não soube dizer-lho.
Ela zangou-se e comecei a dar-me conta de que olhava para todos da mesma maneira.
quero pedir uma coisa
já é teu e não peças só isso
já temos duas coisas e o dia mal começou
as folhas andam a pôr o chão de muitas cores vemo-nos com as cores do chão estamos adolescentes vamos soprar leve sobre as palmas das mãos folha a folha vamos ficar da cor das romãs
e entramos ligeirinhos em casa
- Escuta isto do Daniel Faria:
”Se acender a luz
Não morrerei sozinho."
- Está bem. Mas, se apagar a luz, vejo mais para dentro e não preciso de fechar os olhos…
- Mas, assim, não dou conta de que também estás a olhar para mim. E, se pelo rabinho do olho, entrar uma ponta de luz…
- E é preciso?
- Quem olha gosta de saber que está a ser olhado!
- Não era da luz do Daniel que estávamos a falar?
- Mas eu não mudei de conversa!
- Pronto, vou acender a luz.
A manhã soprou doce, o chão trouxe as lembranças dos primeiros desejos e a tarde vai calma.
Vamos para o areal, para o sítio onde é costume chegar a ponta da maré. Aquela curva da rocha, onde, a princípio, a manhã nos acordava; era lá que vinha uma onda atrevida fazer cócegas nos corpos. Ríamo-nos: o mar a pensar que tínhamos gasto as forças todas e a querer continuar as carícias.
Vamos para o areal, por desejos que abençoem a tarde.
um pão que saiba a pão,
se a alegria não sabe,
um pão que saiba a sol
e ao mar do sal.
um pão que saiba a chão,
se a amor não sabe,
um pão que saiba a seiva
e a lábio de mulher.
um pão que saiba à mão
de quem o faz.
um pão que saiba,
mesmo que pouco, a paz.
António Rebordão Navarro, Longínquas Romãs e alguns animais humildes - Selecção e prefácio de Francisco Duarte Mangas - ASA
Dois gregos estão a conversar: talvez Sócrates e Parménides.
Convém que nunca saibamos os seus nomes; a história, assim, será mais misteriosa e mais tranquila.
O tema do diálogo é abstracto. Aludem por vezes a mitos, de que ambos descrêem.
As razões que alegam podem abundar em falácias e não chegam a um fim.
Não polemizam. E não querem persuadir nem ser persuadidos, não pensam em ganhar ou em perder.
Estão de acordo apenas numa coisa; sabem que a discussão é o não impossível caminho para chegar a uma verdade.
Livres do mito e da metáfora, pensam ou tentam pensar.
Nunca saberemos os seus nomes.
Esta conversa entre dois desconhecidos num lugar da Grécia é o facto capital da História.
Esqueceram a oração e a magia.
Jorge Luís Borges, Atlas; trad. de Fernando Pinto do Amaral (Obras Completas, vol. III. Editorial Teorema)
Hoje, comecei assim: no rosmaninho estava um passarinho morto. Pelas penas, era pintassilgo e deve ter sido caída dos primeiros voos.
Veio à memória aquilo de Catulo “passer mortuus est meae puellae”. Mas não, que aqui as bicadas dos pássaros querem-se na fruta das árvores e nas amoras…
Plantei o corpito ao lado do diospireiro; aquele que não chegou a ser músico é alimento da árvore trigo dos deuses.
E os diospiros que estão a tomar corpo devem trazer alguma música. Lá para os primeiros frios.
Quanto à observação de mim mesmo, obrigo-me a isso, quanto mais não seja para entrar em composição com este indivíduo junto do qual estarei forçado a viver até ao fim, mas uma familiaridade de sessenta anos comporta ainda muitas probabilidades de erro. No seu aspecto mais profundo, o meu conhecimento de mim próprio é obscuro, interior, inexpresso, secreto como uma cumplicidade. No seu aspecto mais impessoal, tão gelado como as teorias que eu posso elaborar acerca de números: emprego o que tenho de inteligência para ver de longe e de mais alto a minha vida, que se torna a vida de um outro. Mas estes dois processos de conhecimento são difíceis e requerem, um, uma penetração no nosso íntimo, outro, uma saída de nós mesmos.
Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano; trad. de Maria Lamas – Editora Ulisseia
O meu amigo já não se perturbava muito por ir para a cama sozinho, era o que me dizia. Por vezes, sentia a falta de um braço ou de uma perna a dizer “olha, estou aqui”, para poder responder “já tinha notado pelo bater do teu peito”. É que, dizia também, foram tantos os tempos em que adormeceram e acordaram pele com pele e fusão de sentidos…Sentia a falta, mas mantinha a tranquilidade.
Ficava era todo estragado, era assim que falava, quando se via sozinho à mesa, sem ninguém para se ouvirem os silêncios e os olhos se cruzarem: era também por eles que percebiam o que fazia falta um ao outro.
E muitos não entendiam, quando punha na mesa dois e, às vezes, cinco talheres; mas era assim que ficava menos perturbado.
Era sempre com voz calma que falava…